Língua indígena era a principal do país até meados do século 18, quando foi proibida pela corte portuguesa

Por: Laís Modelli / folha.uol.com.br

Os povos que habitavam o território brasileiro antes da chegada dos primeiros colonizadores portugueses falavam cerca de mil línguas, segundo registros da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Tupis – Wikipédia, a enciclopédia livre

Além da riqueza linguística, a maioria deles, principalmente os que habitavam o litoral, onde se formaram as primeiras cidades do país, falava uma língua comum, o tupi antigo. Chamado de “língua brasílica” pelos portugueses, ele foi utilizado no Brasil durante séculos, por jesuítas, colonizadores e até bandeirantes.

Na verdade, os falantes do tupi antigo, assim como os do guarani –vale ressaltar que tupi-guarani não é uma língua, mas uma família de línguas indígenas–, iam muito além do Brasil e se espalhavam por um vasto território da América do Sul, na época da chegada dos europeus ao continente.

Edição histórica de "Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil", de José de Anchieta

Dentro do Brasil, o tupi antigo apresentava variações linguísticas ao longo da costa. Os potiguares do Paraíba até os tamoios do Rio de Janeiro, por exemplo, pronunciavam inteiros os verbos acabados em consoante, enquanto os tupis de São Vicente não pronunciavam a última consoante. Mas eram variações próximas, que permitiram aos colonizadores identificarem uma unidade entre os povos.

Segundo o professor da FFLCH-USP Eduardo Navarro, atualmente um dos principais estudiosos da matéria, o tupi é considerado o idioma indígena clássico do Brasil, uma vez que “foi a única língua indígena, das centenas que foram faladas no país, que se fez representar significativamente no léxico da língua portuguesa”.

Por isso, até hoje é possível encontrar milhares de palavras do tupi no dia a dia dos brasileiros, que vão desde nomes de alimentos (como abacaxi, mandioca, açaí, paçoca, pipoca), animais (capivara, tatu, arara, jacaré-açu, jabuti, perereca), cidades e estados (Pará, Paraná, Manaus, Sergipe, Maceió), rios (Xingu, Xapuri, Ipiranga), vegetação em geral (cipó, capim, jacarandá, samambaia) e até nomes próprios (Iracema, Iara, Araci, Jacira, Maiara).

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O tupi antigo está presente até mesmo nos primórdios da literatura nacional, tendo, inclusive, duas gramáticas publicadas: uma em 1595, “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, de autoria do padre José de Anchieta, e outra de 1621, organizada pelo também jesuíta Luís Figueira.

BANDEIRANTES E CIDADES

Quem roda pelo Sudeste e Centro-Oeste brasileiros percebe a quantidade de cidades com nomes indígenas. Exemplos não faltam: Araçatuba, Bertioga, Itanhaém, Paraguaçu, Cuiabá, Niterói, Curitiba, Peruíbe, Pindamonhangaba, Taubaté, Ubatuba, Uberaba, Piracicaba, Piratininga, entre outras.

Isso porque outro personagem do período colonial que se valeu da língua tupi para se aproximar dos indígenas foram os bandeirantes, que indicavam com os nomes tupis as localidades por onde passavam.

“Noutra faceta, o tupi também serviu aos bandeirantes para melhor entenderem-se com os índios, que levavam escravizados para o desbravamento dos sertões, e por onde passavam as entradas e bandeiras, os portugueses iam denominando esses lugares com toponímias indígenas”, diz trecho de artigo da Universidade Federal do Rio de Janeiro “Os tupinismos na formação do léxico português do Brasil”, publicado em 2008 na Revista Philologus.

“CHORAR AS PITANGAS”

Diversas expressões utilizadas até hoje vieram da fusão do português dos colonizadores com o tupi antigo dos indígenas. Por serem resultado desse casamento linguístico e cultural, elas são chamadas de brasileirismos, ou “tupinismos” para alguns autores, expressões que existem apenas no português falado no Brasil.

Um dos exemplos mais conhecidos de brasileirismos é a expressão “chorar as pitangas”.

Segundo artigo da linguista Nancy Arakaki, a origem da expressão formada no Brasil pode ser bíblica, vindo, provavelmente, de trecho do Evangelho de Lucas em que o sofrimento de Jesus é retratado pelo “seu suor”, suor esse que “era como gotas de sangue que caíam no chão”. Mas não somente, uma vez que a expressão “lágrimas de sangue” já existia em Portugal.

O fato é que, segundo a linguista, os indígenas podem ter absorvido o significado da expressão, “lastimar-se”, mas segundo os seus próprios códigos culturais: o sangue deu lugar à pitanga, fruta que ressalta a forma de uma lágrima e a cor do sangue.

“É interessante destacar que a expressão ‘chorar pitangas’ nos remete à ideia de eufemismo em relação a ‘chorar lágrimas de sangue’ porque lhe é atribuído um valor menor, menos doloroso que é o ato de lastimar-se, lamentar. Essa foi a imagem captada pelos índios num tempo de trocas culturais e vivências ora turbulentas, ora pacíficas e harmoniosas”, escreveu Arakaki em “Memória cultural e linguística do Brasil Colônia em ‘chorar as pitangas'”.

Brasileirismos usados até hoje são “ficar com nhenhenhém”, “estar jururu”, “ficar de tocaia”, “parecer pamonha”, “estar na pindaíba”, “ir para a cucuia”, além de outros.

LÍNGUA PROIBIDA

Segundo registros da biblioteca Brasiliana da USP, a língua brasílica, ou tupi antigo, foi usada por todos, brasileiros e estrangeiros, até meados do século 18.

Em 1758, porém, Marquês de Pombal, o primeiro-ministro de Portugal, publicou um decreto tornando o português o idioma oficial do Brasil, a “língua do rei”, ao mesmo tempo em que proibiu o uso do tupi antigo e demais línguas faladas na colônia na época, como as africanas.

Já era tarde, contudo: o tupi já havia se ramificado pelos costumes e cultura do país.

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