Seja em startups de IA ou em fazendas de leite, a rotina sem pausa está adoecendo quem trabalha demais

Por: Kennedy Alecrim ⁄Redação

A recente discussão sobre o retorno do modelo chinês “9‑9‑6” em startups de inteligência artificial, jornada de trabalho das 9h às 21h, seis dias por semana, reacendeu um alerta global sobre os riscos das jornadas extensas. O formato, banido até mesmo na China, voltou a circular em empresas de tecnologia nos EUA e é flertado, ainda que informalmente, por algumas iniciativas no Brasil. Enquanto isso, no campo, trabalhadores rurais como os produtores de leite vivem há décadas uma realidade parecida, ou até mais intensa, com carga de trabalho contínua, inclusive aos domingos, sem a mesma visibilidade ou debate público.

Pesquisas da Organização Mundial da Saúde e da OIT indicam que jornadas acima de 55 horas semanais aumentam em 35% o risco de acidente vascular cerebral e em 17% o risco de doenças cardíacas. São mais de 745 mil mortes ao ano atribuídas diretamente ao excesso de trabalho. Essa realidade urbana é espelhada no campo. Estudos com produtores de leite do Rio Grande do Sul apontam alterações posturais graves, dores lombares persistentes e baixa flexibilidade, causadas pela atividade física contínua e repetitiva da ordenha, associadas à falta de pausas estruturadas.

Mas o corpo não é o único a sofrer. A mente também adoece. Além das exigências físicas, há o peso emocional de lidar com animais doentes, perdas no rebanho e frustrações ligadas ao desempenho produtivo, situações que afetam a saúde mental do produtor, muitas vezes isolado geograficamente e sem acesso a redes de apoio. Um estudo com produtores do Vale do Taquari identificou que, mesmo com indicadores econômicos minimamente estáveis, a percepção subjetiva de qualidade de vida era comprometida por fatores como cansaço, dor e sensação de aprisionamento à rotina.

No meio urbano, o modelo 9‑9‑6 gera sintomas semelhantes: aumento de estresse, exaustão crônica, perda de criatividade e maior risco de burnout e infartos. Nas startups, a cultura de “hustle” ainda é romantizada como sinônimo de mérito. No campo, o esforço contínuo é naturalizado como parte da vida, mas o efeito é o mesmo. A diferença é que, no setor rural, essa sobrecarga raramente é reconhecida como problema de saúde pública.

O Brasil ainda não registra formalmente a imposição do regime 9‑9‑6 em startups locais, mas o tema já inquieta sindicatos e parlamentares. Um projeto de lei em tramitação propõe a redução da jornada semanal para 36 horas e o fim da escala 6×1. Enquanto isso, na zona rural, não há legislação específica para o volume de horas dos produtores autônomos, o que os deixa expostos a uma autogestão que, por necessidade, muitas vezes ignora os próprios limites.

Trabalhar sem parar adoece, seja em um escritório com ar-condicionado ou em uma ordenha às 5h da manhã. A diferença está na forma como esses modelos são discutidos, reconhecidos e, sobretudo, enfrentados. O debate sobre jornadas exaustivas não pode ignorar o campo. A saúde de quem produz alimento também está em risco, e não há inovação tecnológica que justifique o sacrifício da vida.

Referências

Lima, K. S., Carvalho, N. L., Ribas, M. A., Batista, T. C., Silva, L., Borges Júnior, N. G., & Moreira Leal de Carvalho, T. G. (2019). O caminho da pesquisa integralidade na atenção à saúde postural do trabalhador rural na atividade leiteira no Rio Grande do Sul/Brasil. Contexto & Educação, 34(108), 197–204.

Santana, E. V. S. (2021). Avaliação da qualidade de vida de produtores de leite do Vale do Taquari. Research, Society and Development, 10(12), e329101220699. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i12.20699

Pega, F., Nafradi, B., Momen, N., Ujita, Y., & Streicher, K. (2021). Global, regional, and national burdens of ischemic heart disease and stroke attributable to exposure to long working hours for 194 countries, 2000‑2016: A systematic analysis from the WHO/ILO Joint Estimates. Environment International, 154, 106595. https://doi.org/10.1016/j.envint.2021.106595

World Health Organization. (2021, May 17). Long working hours can increase deaths from heart disease and stroke. https://www.who.int/news/item/17-05-2021-long-working-hours-increasing-deaths-from-heart‑disease‑and‑stroke‑who‑ilo

DW. (2021, May 17). Long working hours are a killer, says WHO. https://www.dw.com/en/deaths-from-long-working-hours-on-the-rise-says-who/a‑57551832

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