Entre estatísticas que mostram envelhecimento e evasão dos jovens, famílias que planejam a transição combinam gestão, educação técnica e apoio institucional para manter o negócio rural vivo

Por: Kennedy Alecrim / Redação

A sucessão familiar no meio rural deixou de ser um rito natural de passagem. As evidências mostram um cenário de continuidade frágil, marcado por propriedades envelhecidas, pouca formalização do processo de transição e planejamento insuficiente.

O Censo Agropecuário indica a centralidade da agricultura familiar na estrutura produtiva brasileira e o peso do trabalho familiar na ocupação no campo, mas revela também a necessidade de modernização gerencial para sustentar a continuidade do negócio (IBGE, 2019). A literatura recente mapeia fatores que favorecem a sucessão, propriedades estruturadas, produção diversificada, participação efetiva dos jovens nas decisões e apoio familiar, e obstáculos que a travam, como restrições de crédito, desigualdades de gênero, ausência de assistência técnica e transição sem plano (Monteiro, Martins, Araújo, Brabo & Souza dos Santos, 2024). Na prática, o que diferencia os casos bem-sucedidos é tratar a sucessão como processo e não como evento: introdução gradual dos herdeiros na gestão, capacitação técnica, clareza sobre papéis e métricas, e discussão aberta de patrimônio e governança (Mocelin, 2024).

O ambiente de políticas públicas começou a se mover, com a formulação do Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural e, posteriormente, com a instituição em lei da Política Nacional de Juventude e Sucessão Rural, explicitando eixos como acesso à terra e ao crédito, assistência técnica e extensão rural e instrumentos de comercialização (Ministério da Secretaria-Geral, 2024; Brasil, 2025). Essas diretrizes não substituem o protagonismo das famílias, mas reduzem barreiras estruturais que usualmente empurram os sucessores para fora do campo. Em paralelo, serviços de extensão e programas de formação gerencial, quando contínuos, diminuem a assimetria entre o saber prático do titular e as competências de gestão de quem chega para assumir, sobretudo em propriedades familiares com baixa formalização de rotinas (Monteiro et al., 2024; IBGE, 2019).

Ignorar a dimensão humana desse processo, porém, é um erro estratégico. A literatura sobre saúde do trabalhador rural mostra que a sucessão acontece num terreno já tensionado por demandas econômicas, sazonalidade, riscos físicos, dívidas, exposição a intempéries e incerteza de preços. Nessa base, o “peso” de herdar não é apenas jurídico e financeiro; é também psicológico. Em estudo com agricultores brasileiros, a prevalência de sintomas depressivos alcançou 16,8%, com 6,1% em episódio corrente e 10,7% em recorrente. Estiveram associados maior risco quando havia insatisfação profissional, não posse da terra, histórico de intoxicação por agrotóxicos, multimorbidade e episódios depressivos prévios (Petarli et al., 2024). Em outras palavras, sucessão sem diagnóstico do clima psicossocial da família e da equipe tende a deslocar conflitos latentes para a etapa de transição, deteriorando a tomada de decisão e a continuidade do negócio.

Há ainda um elo frequentemente subestimado entre dor física e sobrecarga psicológica. Pesquisa com operadores rurais identificou que dor e desconforto musculoesquelético são fortes preditores de estresse elevado, privação de sono e exaustão, compondo um quadro estável de “carga mental de trabalho” ao longo do tempo (Chengane, Beseler, Duysen & Rautiainen, 2021). Na gestão da sucessão, isso importa por dois motivos: primeiro, porque a transferência de responsabilidades costuma ocorrer em fases de intensificação do trabalho, aumentando a exposição a dor e fadiga; segundo, porque sucessores mais jovens, muitas vezes com renda apertada e múltiplas funções, acumulam horas e tarefas que ampliam o risco de estafa. Se o plano sucessório não contempla ergonomia, redistribuição de tarefas, automação e calendários realistas, o processo pode acelerar o adoecimento e, por consequência, a desistência.

Do ponto de vista da governança familiar, a evidência brasileira reforça que sucessão eficaz se apoia em previsibilidade. Isso envolve combinar três camadas: transferência progressiva de gestão com metas e indicadores claros; regras de distribuição de rendimentos e reinvestimento pactuadas e revisadas periodicamente; e um desenho patrimonial que reduza ambiguidade e favoritismos, com critérios de mérito e preparo para entrada de sucessores, sem excluir mulheres e herdeiros que não residem no imóvel (Monteiro et al., 2024; Mocelin, 2024). A literatura internacional também alerta que planos que incorporam formação técnica, diversidade de receitas e inserção em redes cooperativas tendem a produzir transições mais suaves e negócios mais resilientes (Breitenbach, 2021). Em termos práticos, isso se traduz em checklists simples, mas duros: quem decide o quê, quando, com base em quais números, como se reporta, como se audita e como se resolve impasse.

O Brasil entrou na década com a combinação desfavorável de envelhecimento da titularidade, jovens que oscilam entre migrar e permanecer, e propriedades familiares sob pressão de custos, clima e crédito. A boa notícia é que o roteiro de saída está razoavelmente descrito: planejamento formal da transição; métricas operacionais básicas e orçamento anual; educação técnica e gerencial para os sucessores; ergonomia e automação para reduzir dor e fadiga; e uso de instrumentos públicos e privados para apoiar investimento e comercialização (IBGE, 2019; Brasil, 2025; Monteiro et al., 2024). Sucessão não é sorte. É método, contrato e cuidado.

Referências

  • Brasil. (2025, 23 de julho). Lei nº 15.178, de 23 de julho de 2025: Institui a Política Nacional de Juventude e Sucessão Rural. Brasília: Presidência da República.
  • Breitenbach, R. (2021). Sucessão familiar na agricultura: cenário internacional. Estudios Sociales, 31(59), 115–138. https://doi.org/10.22201/fcpys.24485705e.2021.59.77347
  • Chengane, S., Beseler, C. L., Duysen, E. G., & Rautiainen, R. H. (2021). Occupational stress among farm and ranch operators in the midwestern United States. BMC Public Health, 21, 2076. https://doi.org/10.1186/s12889-021-12053-4
  • IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019, 25 de outubro). Censo Agro 2017: população ocupada nos estabelecimentos agropecuários cai 8,8. Rio de Janeiro: IBGE.
  • Ministério da Secretaria-Geral da Presidência da República. (2024, 11 de dezembro). Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural vai fortalecer a permanência de jovens no campo. Brasília: Secretaria-Geral.
  • Mocelin, J. V. (2024). Sucessão familiar rural: desafios na percepção dos gestores rurais. ABCustos. https://doi.org/10.47179/abcustos.v19i2.738 (se aplicável; ajustar conforme o periódico)
  • Monteiro, E. P., Martins, C. M., Araújo, J. G., Brabo, M. F., & Souza dos Santos, M. A. (2024). Sucessão na agricultura familiar brasileira: uma revisão sistemática da literatura. Revista Brasileira de Educação do Campo, 9, e15729. https://doi.org/10.70860/ufnt.rbec.e15729
  • Petarli, G. B., Cattafesta, M., Viana, M. C. M., Bezerra, O. M. P. A., Zandonade, E., & Salaroli, L. B. (2024). Depression in Brazilian farmers: prevalence and associated factors. Journal of Mental Health, 33(1), 127–135. https://doi.org/10.1080/09638237.2022.2069701

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