Por: Kennedy Alecrim / Redação
Um ideal antigo, uma ilusão moderna
A ideia de que o mundo é justo e de que cada pessoa colhe exatamente aquilo que planta atravessa séculos. Desde os filósofos gregos que associavam virtude à recompensa, até os discursos modernos sobre meritocracia, esse princípio foi utilizado como base para legitimar posições sociais. Na psicologia social, essa crença é conhecida como just world hypothesis, sistematizada por Melvin Lerner em 1980. Segundo ele, acreditar em um mundo justo dá às pessoas a sensação de ordem e previsibilidade, mas também pode levá-las a culpar as vítimas e a negar desigualdades estruturais.

A Equity Theory de Adams (1965) mostra que as pessoas comparam esforço e recompensa em relação a outros, de modo que, quando percebem desequilíbrio, emergem sentimentos de injustiça. Nessa mesma direção, a Teoria da Comparação Social de Festinger (1954) demonstra que os indivíduos avaliam seu valor observando o desempenho dos demais, de forma que ver alguém ascendendo sem parecer merecedor pode ser vivido como ameaça. Ampliando esse quadro, Callan e colaboradores (2017) revisaram pesquisas e concluíram que crenças rígidas de merecimento, quando confrontadas por experiências de injustiça, tendem a aumentar sintomas de ansiedade e depressão. Esse conjunto de estudos mostra que a ideia de que esforço individual sempre garante sucesso é ao mesmo tempo um motor de motivação e uma fonte de frustração e adoecimento quando a realidade social desmente essa promessa.
As “mesmas 24 horas” e a corrida desigual
Um dos exemplos mais populares dessa crença está na frase recorrente: “todos têm as mesmas 24 horas no dia”. O slogan, muito repetido em redes sociais por influenciadores e empresários, sugere que esforço e disciplina seriam suficientes para qualquer pessoa alcançar sucesso. O pressuposto é o de que a vida funciona como uma corrida em que todos largam da mesma linha de partida e que, portanto, quem cruza a linha de chegada primeiro o faz por merecimento.
Mas as evidências mostram que isso é uma ilusão. As condições de partida são marcadas por profundas desigualdades: acesso a educação de qualidade, redes de contato, saúde, segurança alimentar, tempo livre e até transporte. Em países como o Brasil, dados do IBGE revelam que apenas 13% dos jovens de famílias do quinto mais pobre chegam à universidade, contra mais de 60% entre os mais ricos. Se as horas do dia são iguais, o ponto de partida não é.
O paradoxo psicológico: motivação e sofrimento
A crença no merecimento tem um duplo efeito. De um lado, pode ser motivadora: acreditar que o esforço será recompensado incentiva estudo, trabalho e persistência. De outro, quando as recompensas não chegam, gera frustração, ressentimento e adoecimento psicológico. Esse paradoxo ajuda a explicar porque discursos meritocráticos funcionam tão bem como slogans motivacionais, mas ao mesmo tempo estão associados a altos níveis de estresse quando expectativas não se realizam.
Ressentimento social: quando o outro não merece
Pesquisas recentes no Brasil, conduzidas pelo Instituto Quaest, mostram como percepções de merecimento alimentam a polarização política. Grupos que melhoraram de vida nas últimas duas décadas, como negros, mulheres e nordestinos, tendem a avaliar esse progresso como justo. Já grupos que não se percebem beneficiados, como brancos, homens e classes médias do Sul, muitas vezes consideram que os outros não mereciam tal ascensão.
Esse ressentimento não é apenas brasileiro. Nos Estados Unidos, estudos mostram que parte da classe média branca interpreta a ascensão de minorias raciais e imigrantes como perda ilegítima de status. O resultado é a corrosão da coesão social e o fortalecimento de narrativas excludentes.
Dados e estatísticas
Dados oficiais reforçam o contraste entre crença e realidade. O IBGE (2022) mostra que apenas 13% dos jovens mais pobres chegam à universidade, contra 60% dos mais ricos. O World Inequality Database (2023) indica que o 1% mais rico concentra cerca de 30% da renda nacional. Pesquisas internacionais apontam ainda que pessoas de renda mais alta acreditam mais fortemente que o mundo é justo, enquanto as de renda baixa tendem a perceber desigualdade, como mostraram Côté, House e Willer (2015).
Perspectiva crítica: o risco do mito meritocrático
O discurso meritocrático funciona como um antídoto simbólico contra a incerteza: dá a impressão de que tudo é controlável pelo esforço individual. Mas quando confrontado pela realidade desigual, pode gerar culpa individual, ressentimento coletivo e estigmatização de políticas públicas. A culpa aparece quando a pessoa acredita que fracassou apenas por não se esforçar o suficiente. O ressentimento emerge quando grupos que não ascenderam questionam a legitimidade do progresso dos outros. E a estigmatização ocorre quando ações de redistribuição ou inclusão são vistas como privilégios concedidos a quem “não merece”.
Conclusão analítica
Diante desse paradoxo, uma pergunta inevitável surge: como acreditar que meu esforço, por exemplo na plantação, vai garantir meu sucesso? A resposta está em reconhecer que o esforço continua sendo essencial, mas não atua sozinho. No campo, plantar com dedicação aumenta as chances de colheita, mas o resultado também depende do clima, da incidência de pragas, do acesso a insumos, das oscilações do mercado e do suporte coletivo de cooperativas e políticas públicas. Isso significa que o sucesso não é apenas fruto da vontade individual, mas de uma rede de condições que precisa ser reconhecida e fortalecida. O recado central é que vale a pena se esforçar, mas é igualmente importante buscar apoio, lutar por melhores condições e investir em estratégias coletivas. Assim, a esperança não fica na ilusão de que basta querer, mas se apoia em uma visão mais realista de que esforço somado a suporte e planejamento aumenta de fato as chances de prosperar.
Bibliografia:
- Adams, J. S. (1965). Inequity in social exchange. Advances in Experimental Social Psychology, 2, 267–299. https://doi.org/10.1016/S0065-2601(08)60108-2
- Callan, M. J., Kim, H., Gheorghiu, A. I., & Matthews, W. J. (2017). The belief in a just world and psychological well-being: A review and synthesis. Psychological Bulletin, 143(1), 134–172. https://doi.org/10.1037/bul0000126
- Côté, S., House, J., & Willer, R. (2015). High economic inequality leads higher-income individuals to be less generous. Psychological Science, 26(3), 310–318. https://doi.org/10.1177/0956797614557319
- Deutsch, M. (1975). Equity, equality, and need: What determines which value will be used as the basis of distributive justice? Journal of Social Issues, 31(3), 137–149. https://doi.org/10.1111/j.1540-4560.1975.tb01000.x
- Festinger, L. (1954). A theory of social comparison processes. Human Relations, 7(2), 117–140. https://doi.org/10.1177/001872675400700202
- Lerner, M. J. (1980). The belief in a just world: A fundamental delusion. New York: Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4899-0448-5