Por: Kennedy Alecrim /Redação

No Brasil, a mesma palavra descreve coisas diferentes. Quando alguém diz agronegócio, pode estar nomeando o sistema econômico que liga insumos, produção no campo, processamento, logística e consumo. Nessa acepção, quase todo produtor faz parte: famílias agricultoras, cooperados, assentados, integrados e grandes empresas compram fertilizantes e sementes, seguem regras sanitárias, vendem em mercados que exigem padronização e dependem de crédito, frete e clima. O termo também vira rótulo político para um projeto específico de desenvolvimento, associado a escala, mecanização e foco em exportação. O conflito começa quando esses dois sentidos se misturam na mesma frase.

O MST ajuda a visualizar a confusão. É um movimento social com pauta política clara, voltada à reforma agrária e à defesa da agroecologia. Ao mesmo tempo, suas cooperativas compram insumos, processam e vendem alimentos. Isso significa que, no plano econômico, circulam nas mesmas cadeias que qualquer outro ator do agro. No plano político, porém, o movimento tensiona o modelo dominante e tenta deslocar prioridades de política pública. As duas coisas acontecem ao mesmo tempo e é aí que o debate costuma travar: um lado enxerga participação em cadeias como prova de incoerência; o outro enxerga a crítica ao modelo como parte legítima da disputa por ideias.

As universidades federais acabam no centro desse atrito porque concentram ensino, pesquisa e extensão em regiões onde o agro é decisivo. Quando um evento universitário usa palavras de ordem, setores conservadores leem uso político de um espaço financiado com recursos públicos. Quando um curso ou seminário dá palco apenas a representantes do setor, movimentos sociais apontam hegemonia e falta de contraditório. Existe um caminho menos conflituoso e mais útil para todos. Em eventos com temas sensíveis, é preciso colocar mais de uma visão na mesma mesa, com tempo igual para cada lado, títulos que explicam claramente o que será discutido e como os dados foram obtidos, além de informar custos e resultados práticos para a região. Quando isso acontece, o debate deixa de parecer palanque e vira serviço: gente diferente se reúne para resolver problemas concretos do campo, como sanidade, custos de insumos, logística, regularização fundiária e segurança do trabalho.

A guerra de rótulos tem custo humano. Quando o produtor se percebe como alvo moral, o reconhecimento social cai. Na prática, isso vira preocupação constante, irritabilidade, ceticismo e retração da cooperação. Programas de compras públicas que destacam a origem, certificações com valor percebido e iniciativas de visibilidade local ajudam a recompor a sensação de justiça e pertencimento profissional. Não se trata de propaganda, e sim de alinhar incentivos para que boas práticas recebam reconhecimento tangível.

O Brasil não está sozinho nessa confusão de sentidos. Na Europa, os protestos recentes de agricultores misturaram queixas de custo e competitividade com críticas a metas ambientais do chamado Pacto Verde Europeu. A Política Agrícola Comum, que financia parte da renda e de práticas ambientais no continente, convive com regras mais rígidas para adubação e proteção da água. Em países como a Holanda, as metas de redução de poluição por nitrogênio foram lidas por muitos produtores como ameaça à sobrevivência econômica. Para o público brasileiro, ajuda traduzir assim: a Europa tenta acelerar uma transição ambiental com metas e condicionantes, e os produtores reagem quando percebem que o ritmo e os custos recaem sobre a ponta da cadeia. O rótulo agro vira sinal de disputa política, embora todos continuem dependentes da mesma rede de insumos, crédito e mercados.

Na Índia, o governo aprovou reformas para ampliar a venda direta e contratos entre produtores e empresas, com a promessa de mais competição e melhores preços. Uma parte expressiva dos agricultores entendeu como risco de perder a proteção dos mercados regulados tradicionais. O resultado foram grandes protestos e, no fim, a revogação das leis. Em linguagem brasileira, a controvérsia parecia um embate entre promessa de eficiência e medo de concentração de poder de compra. Fala-se em agronegócio para designar empresas maiores e integração de mercados, enquanto os produtores se identificam como lado frágil da negociação.

Nos Estados Unidos, a expressão Big Ag serve para criticar concentração em segmentos como sementes, grãos, carne e varejo. Ao mesmo tempo, a retórica das family farms celebra a identidade do produtor familiar. Na prática, há interdependência: fazendas de todos os portes vendem para os mesmos processadores e varejistas e compram de fornecedores que dominam tecnologia e distribuição. A palavra Big Ag funciona como atalho político, não como categoria técnica do sistema de cadeias.

No México, a disputa sobre milho geneticamente modificado combinou argumentos de soberania alimentar e saúde pública com um contencioso comercial com os Estados Unidos. Houve restrições internas e debate sobre importações de milho para ração animal, com decisões em instâncias do acordo comercial norte-americano. Traduzindo para o leitor brasileiro: a mesma cultura agrícola foi tratada ora como tema de segurança nacional e consumo humano, ora como parte de um fluxo de comércio e ração que sustenta cadeias de proteína animal. A expressão agronegócio oscilou entre um rótulo de risco e um sinônimo de integração produtiva.

O fio condutor desses casos é simples. Em todos eles, termos econômicos amplos viram bandeiras políticas. Quando a conversa usa a palavra agro para nomear ao mesmo tempo cadeias produtivas e um projeto ideológico, discussões sobre preço de insumos, regras ambientais, comércio e crédito perdem foco. O passo prático é separar planos. Se o assunto é técnico e econômico, fala-se de produtividade, qualidade, custo, risco, logística e renda. Se o assunto é político e normativo, fala-se de valores, distribuição, governança da terra, externalidades e deveres coletivos. Ambos os planos importam. O erro é misturá-los sem avisar.

Para o leitor que vive do campo, a mensagem final é direta. No sentido das cadeias, todos estamos no mesmo barco. Divergências sobre o rumo existem e devem ser debatidas, mas com regras claras de pluralidade, métricas compreensíveis e foco em problemas compartilhados. O produtor não precisa escolher entre identidade e eficiência. É possível defender reconhecimento social, melhoria de renda e responsabilidade ambiental ao mesmo tempo, desde que a conversa pare de trocar de dicionário no meio da frase.

Fontes:

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