Por: Kennedy Alecrim / Redação

Imagine um agricultor que perde toda a lavoura após meses de seca. Diante disso, alguém lhe diz: “tire lições da dor, isso vai te fortalecer”. Essa frase, que parece inspiradora, esconde um problema sério: ela culpabiliza quem sofre se ele não conseguir transformar a dor em aprendizado ou crescimento. Se ocorrer novamente pode haver um desgaste psicológico ainda maior. É isso que muitos autores vêm chamando de violência simbólica, quando um conceito bonito é usado para exigir o impossível.

Uma dessas ideias perigosas é a “antifragilidade”, popularizada por Nassim Taleb em seu livro de 2012. O termo descreve sistemas que melhoram com o caos, como músculos que crescem após microlesões, ou mercados que se ajustam com falhas. Mas, ao ser levado para o mundo das pessoas, especialmente em ambientes corporativos e do agronegócio, esse conceito vem sendo distorcido — e, pior, transformado em cobrança emocional.

O que é antifragilidade e o que ela não é

Nos estudos originais, como os artigos de Axenie et al. (2023) e Eraso-Hernandez & Riascos (2024), a antifragilidade é descrita como:

  • uma emergência estrutural que aparece em sistemas complexos;
  • sem necessidade de consciência, intenção ou agência;
  • comum em redes de tráfego, evolução biológica, microbiomas, inteligência artificial.

Ou seja: a antifragilidade não é uma emoção, nem uma habilidade humana, como a resiliência ou a autoeficácia. Antifragilidade, quando transposta para humanos, tende a se confundir com:

  • Resiliência transformadora (que envolve adaptação e mudança positiva),
  • Crescimento pós-traumático (mudanças positivas depois de adversidades),
  • Mindset de crescimento (Dweck, 2006), aplicado em situações de desafio.

Isso indica que, ao invés de um construto novo, pode ser apenas uma forma retórica de unir conceitos já existentes sob uma nova etiqueta. Se quisermos tratar “antifragilidade” como construto psicológico, seria necessário demonstrar que ele explica algo além do que já explicam resiliência, crescimento pós-traumático ou hardiness. Até hoje, essa validade discriminante não foi estabelecida empiricamente. O risco é criar apenas um “novo nome” para algo já estudado. Isso pode ser útil em discursos motivacionais ou de liderança, mas em ciência há risco de inflar jargões e dispersar esforços de pesquisa.

O problema começa quando…

Consultores e empresas passaram a usar o termo “antifrágil” como sinônimo de:

  • “ser forte na adversidade”
  • “saber se reinventar”
  • “transformar dor em potência”

Isso parece motivacional, mas esconde um risco: quem não consegue seguir essa lógica é visto como fraco ou culpado. No campo, isso atinge especialmente o produtor rural que:

  • está cansado de perdas climáticas e dívidas;
  • sente tristeza, insônia, angústia, mas não “melhora com o caos”;
  • não quer mais ser forçado a aprender com a dor.

A ciência da mente é clara: nem toda dor vira força

Pesquisas recentes como as de Ward et al. (2021) mostram que:

  • o estresse prolongado aumenta o risco de depressão e PTSD;
  • o sofrimento não é, por si só, transformador, ele pode adoecer;
  • o que promove saúde mental é apoio social, autocuidado e proteção.

Autores como Bandura também demonstram que a crença na própria capacidade (autoeficácia) ajuda, mas não depende só da força de vontade individual, depende do ambiente, das relações, dos recursos disponíveis.

Visão de autores sobre confundir Antifragilidade com resiliência

David Runciman, em sua resenha no The Guardian, alerta que “antifragilidade não é a solução” e que a proposta de Taleb pode ser “profundamente antissocial”. Autores vinculados ao Farnam Street Blog destacam que, “enquanto Taleb apresenta antifragilidade como algo desejável, ele reconhece que a resiliência continua sendo importante quando antifragilidade não for possível ou for arriscada demais”. D. Hillson argumenta que “antifragilidade deve ser entendida como uma adição valiosa, mas não como substituição automática da resiliência”.

Qual a diferença entre Antifragilidade e Resiliência

CaracterísticaResiliênciaAntifragilidade
FocoRecuperaçãoCrescimento com o caos
Resultado esperadoRetorno ao estado anteriorMelhoria progressiva
Exemplo clássicoPessoa que supera um lutoEmpresa que se fortalece em crises
Área de origemPsicologiaTeoria dos sistemas, finanças, filosofia prática
Exposição ao estressorAlgo a ser enfrentado e superadoAlgo desejado e aproveitado

Antifragilidade não pode ser vendida como meta psicológica

Usar o termo “antifragilidade” para sugerir que produtores rurais devem crescer com a dor é:

  • um uso incorreto do conceito (que vem da física e da matemática, não da psicologia);
  • uma forma sutil de violência simbólica, que desconsidera a complexidade humana;
  • uma cobrança moral disfarçada, que finge ser motivacional, mas pune quem sofre.

No campo, precisamos de cuidado, não de slogans

A saúde mental do produtor rural exige mais do que frases prontas. Exige:

  • escuta real, sem julgamentos;
  • políticas públicas e proteção contra vulnerabilidades;
  • espaços onde seja possível dizer “eu não aguento mais”, sem medo de parecer fraco.

Como diz um trecho do livro de Taleb, “o antifrágil se beneficia do caos”. Mas o ser humano precisa de sentido, de vínculo e de amparo. E isso não nasce da dor, nasce da solidariedade. A novidade de Taleb é relevante nos sistemas complexos, mas quando levada para psicologia ou ciências sociais, tende a recobrir conceitos já existentes (resiliência, crescimento pós-traumático, hardiness) sem oferecer evidência empírica robusta de que se trata de algo distinto.

Referências:

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