Por: Kennedy Alecrim / Redação
Imagine um agricultor que perde toda a lavoura após meses de seca. Diante disso, alguém lhe diz: “tire lições da dor, isso vai te fortalecer”. Essa frase, que parece inspiradora, esconde um problema sério: ela culpabiliza quem sofre se ele não conseguir transformar a dor em aprendizado ou crescimento. Se ocorrer novamente pode haver um desgaste psicológico ainda maior. É isso que muitos autores vêm chamando de violência simbólica, quando um conceito bonito é usado para exigir o impossível.

Uma dessas ideias perigosas é a “antifragilidade”, popularizada por Nassim Taleb em seu livro de 2012. O termo descreve sistemas que melhoram com o caos, como músculos que crescem após microlesões, ou mercados que se ajustam com falhas. Mas, ao ser levado para o mundo das pessoas, especialmente em ambientes corporativos e do agronegócio, esse conceito vem sendo distorcido — e, pior, transformado em cobrança emocional.
O que é antifragilidade — e o que ela não é
Nos estudos originais, como os artigos de Axenie et al. (2023) e Eraso-Hernandez & Riascos (2024), a antifragilidade é descrita como:
- uma emergência estrutural que aparece em sistemas complexos;
- sem necessidade de consciência, intenção ou agência;
- comum em redes de tráfego, evolução biológica, microbiomas, inteligência artificial.
Ou seja: a antifragilidade não é uma emoção, nem uma habilidade humana, como a resiliência ou a autoeficácia.
O problema começa quando…
Consultores e empresas passaram a usar o termo “antifrágil” como sinônimo de:
- “ser forte na adversidade”
- “saber se reinventar”
- “transformar dor em potência”
Isso parece motivacional, mas esconde um risco: quem não consegue seguir essa lógica é visto como fraco ou culpado. No campo, isso atinge especialmente o produtor rural que:
- está cansado de perdas climáticas e dívidas;
- sente tristeza, insônia, angústia, mas não “melhora com o caos”;
- não quer mais ser forçado a aprender com a dor.

A ciência da mente é clara: nem toda dor vira força
Pesquisas recentes como as de Ward et al. (2021) mostram que:
- o estresse prolongado aumenta o risco de depressão e PTSD;
- o sofrimento não é, por si só, transformador — ele pode adoecer;
- o que promove saúde mental é apoio social, autocuidado e proteção.
Autores como Bandura também demonstram que a crença na própria capacidade (autoeficácia) ajuda, mas não depende só da força de vontade individual — depende do ambiente, das relações, dos recursos disponíveis.
Antifragilidade não pode ser vendida como meta psicológica
Usar o termo “antifragilidade” para sugerir que produtores rurais devem crescer com a dor é:
- um uso incorreto do conceito (que vem da física e da matemática, não da psicologia);
- uma forma sutil de violência simbólica, que desconsidera a complexidade humana;
- uma cobrança moral disfarçada, que finge ser motivacional, mas pune quem sofre.
No campo, precisamos de cuidado — não de slogans
A saúde mental do produtor rural exige mais do que frases prontas. Exige:
- escuta real, sem julgamentos;
- políticas públicas e proteção contra vulnerabilidades;
- espaços onde seja possível dizer “eu não aguento mais” — sem medo de parecer fraco.
Como diz um trecho do livro de Taleb, “o antifrágil se beneficia do caos”. Mas o ser humano precisa de sentido, de vínculo e de amparo. E isso não nasce da dor, nasce da solidariedade.
Referências:
- Axenie, C., Lohan, E. S., & Ristaniemi, T. (2023). Antifragility as a complex system’s response to perturbations, volatility, and time. Frontiers in Systems Neuroscience, 17, 1167086. https://doi.org/10.3389/fsysb.2023.1167086
- Bandura, A. (1997). Self-efficacy: The exercise of control. W.H. Freeman.
- Eraso-Hernandez, D., & Riascos, A. P. (2024). Antifragility of stochastic transport on networks with damage. Physica A: Statistical Mechanics and its Applications, 633, 129460. https://doi.org/10.1016/j.physa.2023.129460
- Taleb, N. N. (2012). Antifrágil: Coisas que se beneficiam com o caos (É. Calderaro, Trad.). Objetiva. (Obra original publicada em inglês como Antifragile: Things That Gain from Disorder)
- Ward, C., Thomas, J. M., & Burke, J. (2021). Post-traumatic stress disorder and depression following trauma: The role of social support and resilience. Frontiers in Psychology, 12, 621706. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.621706