Por: EDUARDO DO VALLE (@DUDUVALLE) para gq.globo.com

Em pouco mais de 8 dias, perfil anônimo que denuncia episódios de descaso com a pandemia já soma mais de 260 mil seguidores no Instagram e no Twitter; aqui, o criador fala sobre a perda familiar e a indignação que o motivaram a começar a exposição

“No começo de dezembro, perdi minha avó vítima de complicações da covid”. Quem fala é o criador da página @brasilfedecovid, o perfil anônimo que há uma semana se dedica a expor clipes de aglomerações pelo Brasil, da orla lotada de Guarapari, no Espírito Santo, a um show sertanejo na Pipa, Rio Grande do Norte. Ativo há pouco mais de uma semana, pouco se sabia sobre a identidade de seu criador, que revelou em uma entrevista no Fantástico no último domingo, 3, a doença e a morte na origem da indignação que deu origem à página:

“Na semana seguinte, passeando pelo Instagram, vi vários conhecidos curtindo festas com aglomeração em várias regiões do Brasil. Aquilo me deixou chocado”

O perfil @brasilfedecovid no Instagram (Foto: Reprodução/Instagram)
O perfil @brasilfedecovid no Instagram (Foto: Reprodução/Instagram)

É um retrato que se repete em um país onde a covid-19 já fez 196 mil vítimas. E também nas mais de 250 publicações do perfil no Instagram e no Twitter. “Não conseguimos dar conta de tantas denúncias”, diz o administrador da página, que preferiu ficar anônimo durante a entrevista. Até então foram mais de mil materiais editados.

Aglomerações em Santa Catarina, Espírito Santo e Maranhão: posts do @brasilfedecovid (Foto: Reprodução/Instagram)
Aglomerações em Santa Catarina, Espírito Santo e Maranhão: posts do @brasilfedecovid (Foto: Reprodução/Instagram)

À surpresa inicial do fundador, seguiu-se um trabalho de apuração, que não parou mais. Em menos de 8 dias desde sua criação, o @brasilfedecovid já soma mais de 250 mil seguidores e hoje possui uma equipe de 10 pessoas Brasil afora para dar conta das marcações que não param de chegar. Uma vez confirmada, a denúncia é salva e agendada com legendas que vão da indignação ao sarcasmo: “O sarcasmo ajuda dar uma descontraída, além de prender a atenção dos leitores. Mas no fundo, sendo bem sincero, prevalece o desespero”.

Com o crescimento, o @brasilfedecovid passou a marcar artistas, casas noturnas, produtoras, marcas, governos e até políticos, como Jair Bolsonaro e seu nado em Praia Grande (SP) no dia 1º, assim como prefeitos que promoveram festas de posse sem proteção na virada do ano. A predominância de denúncias, segundo o perfil, viria de Santa Catarina. O estado somava, até a noite de domingo (3), 5.314 mortes e 497.345 diagnósticos positivos confirmados pelo boletim divulgado pelo governo.

As respostas vieram também de artistas retratados no perfil, como Gabriel O Pensador, que esclareceu detalhes do evento em que participou. Sua resposta foi publicada na íntegra pela página. Grandes empresas também se pronunciaram. A Ambev, apontada como patrocinadora de um festa em descumprimento das medidas de segurança,  garantiu que apenas investe em eventos que cumprem todas as medidas e que a ocasião registrada teria usado material promocional de ocasiões anteriores.

Por fim, vieram os ataques e as ameaças, especialmente no Twitter, com seus muitos robôs e maior divisão política: uma “terra de ninguém”, explica o criador da página.

Na entrevista completa, o fundador do @brasilfedecovid fala sobre as reações ao perfil, sobre a necessidade do anonimato, sobre os excessos que chocaram aos próprios moderadores e sobre o que ele imagina como o objetivo final de seu trabalho: “Sabemos que o poder público atua de maneira muito lenta em todas as esferas, então a exposição é uma das poucas saídas. Mostrar o quanto eles são incompententes no combate ao coronavírus”. Mais que a fiscalização, o criador da página garante que o objetivo é “rever nossos conceitos sobre empatia, amor e responsabilidade social”.

GQ Brasil: São pouco mais de 7 dias de conta, 235 posts no feed. Você esperava receber tanto material? Consegue estimar quanto material recebeu?
@brasilfedecovid:
 Para ser bem sincero, não acreditava que o perfil passaria das 10 primeiras publicações. Só que fui encontrando conteúdo com muita facilidade, editava rápido e já publicava. Em poucas horas já tinha centenas de seguidores, que descobriram o perfil de maneira espontânea. Depois disso não teve mais volta.

Nós não aceitamos materiais editados. Recebemos as denúncias com os perfis das pessoas que estão participando das festas ilegais ou clandestinas. Daí checamos as informações e salvamos os vídeos. Depois disso agendamos as publicações.

Até então foram mais de mil materiais editados, com uma predominância do Estado de Santa Catarina. Além disso, temos milhares de mensagens que ainda não conseguimos ler e checar. Não conseguimos dar conta de tantas denúncias.

GQ Brasil: Como surgiu a ideia de montar uma página?
@brasilfedecovid: 
No começo de dezembro, perdi minha avó vítima de complicações da Covid. Na semana seguinte, passeando pelo Instagram, vi vários conhecidos curtindo festas com aglomeração em várias regiões do Brasil. Aquilo me deixou chocado, pois pouco tempo antes eles estavam me desejando pêsames, falando o quanto o vírus era cruel, pois minha avó não saia de casa e foi contaminada por pessoas negacionistas que moravam com ela e não deixaram de frequentar festas. Vi a história se repetindo com os meus conhecidos e resolvi discutir isso, mostrando o quanto estamos falhando como seres humanos.

Aglomerações: posts do @brasilfedecovid (vídeo: Reprodução/Instagram)

GQ Brasil: O que mais surpreendeu desde o início da cobertura?
@brasilfedecovid: 
Perceber que as pessoas entraram de cabeça em uma bolha insana, sem pensar em como será o amanhã e em quem eles vão encontrar pelas ruas ou em casa. As pessoas que participam dessas festas fingem desconhecer os riscos que estão correndo e, principalmente, os problemas que podem gerar para pessoas do grupo de risco.

GQ Brasil: Essa é a primeira iniciativa que você toma desse tipo nas redes sociais?
@brasilfedecovid:
 Sempre fui ativo em causas sociais, mas é a primeira vez utilizando as mídias digitais como ferramenta.

GQ Brasil: Apesar de ser uma página séria, a @brasilfedecovid usa o sarcasmo com alguma frequência. De onde vêm essas sacadas? É riso ou desespero?
@brasilfedecovid:
 Estamos tratando de um assunto muito pesado, que é uma doença seríssima que mata as pessoas. O sarcasmo ajuda dar uma descontraída, além de prender a atenção dos leitores. Mas no fundo, sendo bem sincero, prevalece o desespero.

GQ Brasil: De onde vem a iniciativa de marcar governos, prefeituras, empresas?
@brasilfedecovid: 
Temos dois objetivos com o perfil. O primeiro é mostrar o quanto falhamos como sociedade, o quanto somos frios e desumanos. Precisamos rever nossos conceitos sobre empatia, amor e responsabilidade social. O segundo objetivo é fiscalizar as festas ilegais e clandestinas, que não estão preocupadas em cumprir normas básicas de combate ao coronavírus. Marcamos governos, prefeituras e empresas para colocar neste ciclo de cobranças todos aqueles que realmente precisam fazer algo. Sabemos que o poder público atua de maneira muito lenta em todas as esferas, então a exposição é uma das poucas saídas. Mostrar o quanto eles são incompententes no combate ao coronavírus.

GQ Brasil: Falando em empresas, gigantes como a Ambev já se pronunciaram publicamente negando o apoio a eventos sem segurança. Como você vê esse tipo de resposta? É suficente?
@brasilfedecovid: 
É satisfatório, pois mostra que estamos sendo vistos, mas não suficiente. Acredito que essas grandes marcas precisam mostrar que realmente se preocupam com a sociedade. Elas precisam saber onde estão colocando dinheiro. Precisam estar ao nosso lado para cobramos com mais força medidas contra a pandemia. Não adianta, os brasileiros só sentem  pressão quando o bolso aperta.

GQ Brasil: Que tipo de mudança você acha que uma página como essa pode conseguir? Ou que já conseguiu até o momento?
@brasilfedecovid: 
Queremos fazer brotar a empatia nas pessoas e, principalmente, fazer com que elas entendam seu papel na sociedade. Hoje, não podemos mais aceitar ações egoístas de pessoas que não entendem que dividimos o mundo com bilhões de seres humanos. Minha liberdade não pode colocar em risco a vida de outras pessoas. Estamos vivendo a maior crise humanitária do último século e é inacreditável que uma grande parte da sociedade brasileira não se preocupe com as pessoas que estão ao seu redor.

GQ Brasil: Eu falo “você” por conta da entrevista no Fantástico, mas você está sozinho nessa? Ou existe uma rede ajudando?
@brasilfedecovid:
 No início estava sozinho, mas não conseguia dar conta. Hoje, já somos 10 pessoas, de vários estados do país, e estamos definindo a linha editorial do perfil que será adotada a partir dessa semana.

GQ Brasil: As pessoas nos comentários parecem revoltadas com as cenas. O perfil já recebeu alguma ameaça/ataque?
@brasilfedecovid: 
Temos que separar aqui. No Instagram, 99% dos comentários são positivos. Temos pouquíssimas ameaças por lá. No começo elas até apareciam mais, mas com o crescimento do perfil elas diminuíram muito. Deixamos claro de que nosso papel não é destruir o segmento, muito pelo contrário. Respeitamos e apoiamos quem trabalha dentro das normas relacionadas ao coronavírus.

Já no Twitter, onde existem milhares de robôs e uma divisão política muito grande, somos ameaçados o tempo todo, tanto que estamos pensando em deixar a plataforma, pois ali não existe diálogo. É terra de ninguém. Mas o mais engraçado é que as pessoas nos cobram sem abrir e conferir nossas publicações. Nos taxam de esquerdistas, por exemplo, mas não viram que denunciamos um prefeito do PSB que promoveu um mega show de posse no Maranhão. Nosso movimento não tem bandeira política. Todo mundo que errar será exposto, não interessa se é conservador ou progressista.

GQ Brasil: A ideia é seguir no anonimato? Algum plano de revelar as identidades?
@brasilfedecovid: 
Anonimato sempre. O Brasil é um país extremamente perigoso para quem tenta se posicionar sobre qualquer assunto. Quando falamos de falta de empatia, podemos encaixar aqui também. Vivemos em uma democracia que não aceita a diversidade de pensamento. Então, pensando na segurança de todos, não existe a possibilidade de deixarmos o anonimato.

GQ Brasil: Pessoalmente, você já precisou mudar algo em sua vida cotidiana por conta da página?
@brasilfedecovid: 
Ainda não, pois estou de férias ainda, mas assim que voltar para a rotina normal de trabalho vou ter que mudar muitas coisas. E é por esse motivo que montamos uma equipe de colaboradores para dar continuidade ao projeto. Nos 5 primeiros dias eu trabalhei quase 20 horas por dia só no perfil.

GQ Brasil: Existe algo que vocês não tenham publicado por acharem chocante/desrespeitoso demais?
@brasilfedecovid: 
Sim, temos muitos materiais com pessoas extremamente embriagadas e fazendo coisas absurdas, como defecar na rua, mas preferimos não utilizar. Quando tratamos do público geral, não queremos personalizar as denúncias. Só fazemos isso com os artistas, que são formadores de opinião.

GQ Brasil: Quais são os artistas mais envolvidos com a organização dessas festas? Sabe dizer?
@brasilfedecovid: 
Já publicamos dezenas de denúncias com diversos artistas de grande relevância no país. Artistas dos mais variados estilos musicais e das mais variadas posições políticas. Temos várias histórias, inclusive, de artistas que há poucos dias estavam pedindo para as pessoas ficarem em casa.

GQ Brasil: Na visão de vocês, existe solução para o avanço da covid-19 no país?
@brasilfedecovid:
 A solução é uma só: pressionar o poder público para que tenhamos uma ou várias vacinas logo. Essa é a única forma de acabarmos com a pandemia. Enquanto isso, temos que conscientizar a população de que precisamos ter um pouco mais de paciência para diminuir a velocidade de circulação do vírus.

GQ Brasil: Hoje já existem outros perfis semelhantes, de denúncia de eventos de aglomeração. É algo que a página incentiva?
@brasilfedecovid: 
Quase todos os perfis utilizam nossas denúncias e materiais. No começo ficamos incomodados, pois alguns perfis assumiam a autoria das produções. Mas depois entendemos e ficamos felizes, pois é a prova de que estamos no caminho certo, produzindo um conteúdo extremamente relevante para a sociedade brasileira.

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