Por: Kennedy Alecrim / Redação

A expressão “depressão de alto funcionamento” não é um diagnóstico oficial presente no DSM-5-TR ou na CID-11, mas tem sido utilizada em contextos clínicos e de divulgação para descrever quadros em que a pessoa mantém atividades sociais e profissionais apesar de conviver com sintomas depressivos clinicamente relevantes. Na literatura científica, fenômenos semelhantes são mais bem definidos como depressão subclínica, transtorno depressivo persistente ou episódios depressivos leves. Em todos esses casos, observa-se sofrimento emocional significativo, mesmo quando a funcionalidade aparente é preservada.

No contexto rural, essa característica ganha contornos específicos. O produtor pode continuar trabalhando, cumprir compromissos e sustentar a rotina produtiva, enquanto enfrenta tristeza, desesperança, fadiga, irritabilidade ou alterações de sono e apetite. Essa estratégia funciona, em parte, como uma tentativa de resistência: acredita-se que manter a atividade ajudará a superar a dor. Contudo, esse enfrentamento pode também ser interpretado como uma forma de evitação, em que o trabalho serve para mascarar sentimentos dolorosos e afastar a percepção de vulnerabilidade.

A ideia, por traz desse comportamento é que o produtor pensa que mantendo a atividade vai se livrar da dor. Seria uma tentativa de resistência para não se entregar estratégia de enfrentamento ativo ou coping orientado à tarefa, mas, em alguns casos, também pode ser um mecanismo de evitação ou de “manutenção funcional”, a pessoa se agarra à atividade como forma de não entrar em contato pleno com o sofrimento.

Em termos psicológicos, isso é interpretado como:

  • Resistência/estoicismo – valores culturais ou pessoais (“trabalho cura tudo”) que reforçam a ideia de que continuar produzindo evita “fraqueza”.
  • Coping comportamental – manter-se ocupado para controlar ansiedade, tristeza ou desesperança.
  • Evitação experiencial – continuar funcionando para não entrar em contato com emoções dolorosas; a atividade funciona como anestésico temporário.

Isso não é, por si só, patológico. Para muitos trabalhadores, especialmente produtores rurais, manter a rotina pode ser um fator protetivo no curto prazo (preserva estrutura do dia, contato social, renda). Mas, no médio e longo prazo, se a atividade não vier acompanhada de estratégias efetivas de cuidado, pode levar à exaustão ou agravar o quadro depressivo.

A cultura do estoicismo no campo reforça esse quadro. Valores como autossuficiência, disciplina e força se combinam ao estigma da saúde mental, dificultando que sintomas sejam reconhecidos ou verbalizados. O produtor resiste silenciosamente, acreditando que “trabalho cura tudo”. Esse comportamento pode preservar a rotina no curto prazo, mas, sem apoio adequado, amplia o risco de agravamento da depressão, exaustão e até ideação suicida.

A literatura descreve esse fenômeno como help-negation effect: justamente aqueles com sintomas depressivos intensos ou ideação suicida são os que menos procuram ajuda. Em populações rurais, as barreiras são agravadas por fatores culturais, logísticos e sociais, o que torna a depressão de alto funcionamento invisível aos olhos da família, colegas e profissionais de saúde. Muitas vezes, o primeiro sinal perceptível é a ocorrência de um desfecho grave, como tentativa ou ato suicida.

Diversos estudos corroboram essa interpretação. Reed e Claunch (2020) identificaram risco elevado de sintomas depressivos e suicídio entre operadores rurais nos Estados Unidos. Jones-Bitton e colaboradores (2020) verificaram que agricultores canadenses apresentavam sintomas depressivos graves, mas relutavam em buscar tratamento. Firnhaber et al. (2024) mostraram como o estigma faz com que a expressão de sofrimento psíquico entre agricultores irlandeses seja invisível no cotidiano. Em revisão sistemática, Daghagh Yazd, Wheeler e Zuo (2019) apontaram fatores de risco recorrentes para a saúde mental dos agricultores, como isolamento social, incertezas econômicas e falta de reconhecimento.

Em síntese, o desafio está em reconhecer a invisibilidade dessa condição no meio rural. A triagem ativa, campanhas de sensibilização e a construção de portas de entrada não estigmatizantes são caminhos fundamentais para que a depressão de alto funcionamento deixe de ser uma dor silenciosa e passe a ser um fenômeno reconhecido e cuidado.

Referências
Bianchi, R., & Schonfeld, I. S. (2020). The Occupational Depression Inventory: A new tool for clinicians and epidemiologists. Journal of Psychosomatic Research, 138, 110249. https://doi.org/10.1016/j.jpsychores.2020.110249
Daghagh Yazd, S., Wheeler, S. A., & Zuo, A. (2019). Key risk factors affecting farmers’ mental health: A systematic review. International Journal of Environmental Research and Public Health, 16(23), 4849. https://doi.org/10.3390/ijerph16234849
Firnhaber, J., Richardson, N., et al. (2024). “You don’t want to be seen to be struggling”: barriers and facilitators to Irish farmers’ help-seeking. Sociologia Ruralis. https://doi.org/10.1111/soru.12469
Jones-Bitton, A., Best, C., MacTavish, J., Fleming, S., & Hoy, S. (2020). Stress, anxiety, depression, and resilience in Canadian farmers. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 55, 229–236. https://doi.org/10.1007/s00127-019-01738-2
Reed, D. B., & Claunch, D. T. (2020). Risk for depressive symptoms and suicide among U.S. farm operators and their families. Journal of Agromedicine, 25(1), 13-23. https://doi.org/10.1080/1059924X.2019.1659205

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