Por: Kennedy Alecrim / Redação

Entre influenciadores, atravessadores e algoritmos: como o abismo entre cidade e campo adoece o agricultor

A fala do historiador Jones Manoel no Flow Podcast, criticando o agronegócio, desencadeou uma onda de reações nas redes. Influenciadores do agro, com milhares de seguidores, responderam de forma ruidosa. Um youtuber ironizou: “O cara não sabe sequer a diferença entre agronegócio e agricultura familiar e levou a fala como insulto pessoal”. Outro tentou manter tom “ponderado”, mas repetiu a lógica da ofensa: “foram ataques diretos ao agro”.

O debate nunca foi sobre nuance. Para quem atua no agro digital, qualquer crítica se transforma em ameaça. E para a audiência urbana, o agro se resume a latifúndio, monocultura e concentração de renda.

Mas fora da guerra de posts, a vida rural enfrenta uma realidade de silêncio. O isolamento social e a falta de políticas públicas consistentes em saúde mental agravam o sofrimento do agricultor. O que aparece nas telas como polarização é, no interior, uma rotina de adoecimento invisível.

O atravessador que some da narrativa

Em reportagens da BBC Brasil e da Folha de S. Paulo, agricultores familiares relatam o peso dos atravessadores. Uma produtora de hortaliças em Goiás descreveu como vende alface a R$ 1,50 a cabeça, enquanto vê o mesmo produto chegar ao consumidor por até R$ 6 no supermercado. O lucro fica nas mãos de quem intermedeia, não de quem planta.

Esse exemplo, repetido em feiras, cooperativas e na exportação de commodities, raramente aparece nas falas urbanas contra o agro. O alvo é sempre o agricultor. A lógica de mercado, que define preço e acesso, permanece invisível.

Enquanto o urbano acusa o campo de enriquecer às custas da cidade, o produtor pequeno se vê empurrado à margem, com renda instável e poucas alternativas. O atravessador se torna a figura ausente no discurso, mas presente na vida cotidiana.

Algoritmos que separam dois mundos

Os algoritmos das redes sociais ampliam esse abismo. A experiência de manter dois perfis distintos no Instagram, um voltado ao meio rural, outro ao urbano em Brasília, mostra universos paralelos. No perfil rural, predominam conteúdos sobre produtividade, defesa do setor e críticas às regulações ambientais. No perfil urbano, o feed é inundado por denúncias sobre devastação, concentração fundiária e falas de artistas ou intelectuais contra o agro.

Essa lógica de bolhas é confirmada por estudos do Reuters Institute e do MIT: algoritmos privilegiam engajamento, reforçando visões de mundo já existentes. O público do agro consome discursos que validam sua identidade. O público urbano recebe reforço para sua crítica. Os dois universos quase nunca dialogam. Quando se encontram, é pelo choque.

O viés descrito por Henri Tajfel na Teoria da Identidade Social, ver o grupo de fora como homogêneo e negativo, é potencializado pela arquitetura algorítmica. A cidade enxerga o campo como latifúndio. O campo enxerga a cidade como intelectualidade improdutiva. Como descreve Pariser (2011) no conceito de filter bubble e demonstram estudos posteriores (Flaxman, Goel & Rao, 2016), os algoritmos reforçam preferências já existentes, fechando públicos em câmaras de eco digitais que aumentam a polarização social.

O peso do isolamento

Enquanto isso, a realidade no campo é marcada por isolamento. Reportagem do Cafepoint intitulada “O silêncio do campo: a saúde mental dos agricultores” mostrou como a solidão e a falta de apoio social impulsionam quadros de depressão. Nos Estados Unidos, o suicídio entre agricultores chega a ser o dobro da média nacional. No Brasil, estudos da Fiocruz apontam prevalência de depressão em 7,6% da população rural e problemas relacionados ao álcool em 8,4%.

Casos recentes repercutiram em veículos locais: em Santa Catarina, um agricultor de 42 anos tirou a própria vida após sucessivas quebras de safra e dívidas acumuladas. No Paraná, uma cooperativa criou um grupo de apoio psicológico depois que dois associados se afastaram do trabalho por crise de ansiedade severa. Esses relatos, embora pontuais, revelam um quadro mais amplo: o agricultor sofre em silêncio, longe dos olhos da cidade.

Conclusão: o abismo que adoece

De um lado, influenciadores do agro reforçam a retórica da ofensa e da autodefesa. Do outro, o urbano projeta no campo a caricatura do latifúndio predatório. No meio, atravessadores definem preços e algoritmos reforçam bolhas.

O agricultor real, que enfrenta endividamento, intempéries climáticas e solidão, desaparece da narrativa. Invisível para a cidade e instrumentalizado pelo discurso do agro, sobra-lhe o silêncio. Um silêncio que não é apenas social ou político, mas também mental.

A polarização digital não é apenas um problema de comunicação. É um problema de saúde pública.

Referências

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