Por BBC News Brasil em São Paulo
Descoberta do túmulo: Durante parte do ano passado, o historiador Licínio Nunes de Miranda percorreu diariamente os corredores com 15 mil túmulos no cemitério São João Batista, no centro de Fortaleza. Buscava um jazigo específico: o de Francisco José do Nascimento, um abolicionista conhecido como Dragão do Mar, herói da derrubada da escravidão no Ceará, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea.
No dia 21 de julho, finalmente Licínio encontrou uma pequena construção já deteriorada pelo tempo, onde se lê “Descanso eterno do major Francisco José do Nascimento“.
“Para mim foi uma surpresa maravilhosa”, conta Licínio. “Eu estava de frente com um herói nacional que estava esquecido, um símbolo da luta contra a escravidão.”
A busca pelo túmulo do Dragão do Mar, cujo paradeiro era desconhecido há muitos anos, faz parte do doutorado do historiador na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. O nome, a data da morte e uma referência à esposa do jangadeiro — informações inscritas em uma placa —, apontam que o jazigo de fato pertence ao abolicionista.
A descoberta foi noticiada por jornais de Fortaleza no final do ano passado, mas ganhou relevância internacional há duas semanas, quando a história foi publicada no site da universidade americana.
Nos últimos dias, o historiador deu entrevistas à rádio NPR, emissora pública dos Estados Unidos, e para TVs e revistas especializadas em História.
Licínio pesquisa a trajetória do abolicionismo no Ceará, a primeira província do Brasil a abolir a escravidão.
Dragão do Mar, um jangadeiro que trabalhava no porto de Fortaleza, foi uma figura importantíssima nessa luta precursora.
Ele liderou a última de quatro greves que os trabalhadores do porto realizaram em 1881. O movimento se recusava a transportar negros escravizados que seriam levados para outras províncias.
“Os trabalhadores, muitos deles recém-libertos, já estavam cansados de ver o sofrimento dos escravizados e decidiram agir em favor deles, cruzando os braços e parando o porto”, explica Licínio.
As três primeiras paralisações foram lideradas por José Luís Napoleão, um escravo liberto que comprara a própria liberdade — e a de quatro irmãs — com suas economias. Um ano depois, Napoleão fundou o “Clube dos Libertos”, organização fundamental para a luta abolicionista da época.
O mentor intelectual das greves foi o abolicionista Pedro Artur de Vasconcelos (1851-1914), homem branco e funcionário do porto. Napoleão logo aderiu ao plano de Vasconcelos, conseguindo convencer os milhares de trabalhadores e jangadeiros a aderirem à greve.
Já a última paralisação, no dia 30 de agosto de 1881, foi assumida por Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, depois que Napoleão recusou a liderança do movimento por se achar “velho demais” para a empreitada.
Já tinham se passado 30 anos desde que o tráfico transatlântico havia sido proibido e uma década da Lei do Ventre Livre, que considerava livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de sua promulgação.
A escravidão no Brasil, no entanto, continuava — ainda que sob uma oposição crescente da opinião pública, em parte influenciada pelo abolicionismo nos Estados Unidos e em diversos outros países, e diante da resistência dos escravizados contra a exploração de seu trabalho e a violência.
O simbolismo da insurreição dos jangadeiros cearenses correu o Império, e influenciou a população de outras províncias a lutar contra a escravidão.
Em 1883, os “catraieiros” do Amazonas, que desempenhavam a mesma função dos jangadeiros cearenses — ligavam o cais do porto aos navios com suas pequenas embarcações —, também entraram em greve e se negaram a transportar os negros escravizados que seriam enviados do Norte a outras regiões.
Para Licínio, o movimento amazonense também foi composto por trabalhadores do Ceará que migraram em massa para o Norte do país na época conhecida como “ciclo da borracha”, quando a região assumiu o protagonismo mundial na produção e comercialização da matéria-prima.
Em 1881, as duas províncias — primeiro o Ceará e, depois, o Amazonas — aboliram a escravidão, antes portanto da assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel.
Descoberta do túmulo: Luta abolicionista
O pioneirismo cearense foi resultado de uma conjunção de fatores, que vão desde o ativismo dos abolicionistas ao papel secundário dos escravizados na economia local.
Dragão do Mar — cujo curioso apelido foi dado pelo famoso abolicionista fluminense José do Patrocínio — era um homem mestiço, filho de pescadores do município de Aracati. Ele tinha por volta de 40 anos quando liderou a greve no porto de Fortaleza.
Mas a luta abolicionista cearense não se resumiu às paralisações. “Nos anos seguintes, Dragão do Mar e Napoleão atuaram fortemente contra a escravidão. Ajudaram na fuga de escravizados, juntaram dinheiro para comprar a liberdade de muitos, esconderam pessoas dentro de casa, além de outras manifestações”, explica Licínio.
O movimento resultou na extinção gradual da escravidão em todos os municípios cearenses, até que foi declarada a inexistência de escravos em seu território, em 25 de março de 1884.
Por causa de seu ativismo, Dragão do Mar ficou conhecido como líder e herói do movimento. Chegou a viajar ao Rio de Janeiro, onde conheceu outros abolicionistas de renome, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças.
Para Licínio, a influência do movimento cearense foi enorme. “Muitos escravizados fugiram para o Ceará ao saberem que lá poderiam ser livres. Além do abolicionismo, já um movimento de massa que agregava diversos setores da sociedade, a abolição no Ceará criou um efeito cascata no restante do Brasil, até culminar na Lei Áurea”, diz o historiador.
Em dezembro de 2018, Dragão do Mar foi incluído no livro Heróis e Heroínas da Pátria, que homenageia pessoas consideradas fundamentais para a construção da história do Brasil, como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Luiz Gama, entre outros.
Dragão do Mar morreu em 1914, aos 75 anos. Mais de um século depois, o local onde Francisco José do Nascimento foi enterrado era um completo mistério.
“Eu imaginava que ele estivesse no cemitério São João Batista, mas não tinha certeza, e o local é gigantesco. Nem a administração do cemitério sabia que estava lá, tampouco o governo ou ativistas”, diz o historiador Licínio Nunes de Miranda.
Apesar de sua importância e seu simbolismo para o movimento negro cearense, a figura do Dragão do Mar muitas vezes é esquecida na historiografia do abolicionismo brasileiro, segundo Licínio.
“No Ceará ele é nome de rua, de escola e de centro cultural, mas muitas vezes não se dá a importância que ele tem. A história dele mostra que o abolicionismo não era formado apenas por intelectuais, advogados, jornalistas… Mas também por pessoas comuns, como trabalhadores do porto”, diz.
“Espero que a descoberta do jazigo traga essa história novamente, para que possamos reconhecê-lo como um grande herói brasileiro”, afirma o pesquisador.
*Colaborou Camilla Veras Mota
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