Por BBC NEWS
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi um marco na história por ter sido o maior conflito bélico do mundo na época. Mas o que pouca gente sabe é que não se tratou apenas de um confronto entre países — foi também uma disputa familiar.
As três principais nações que protagonizaram o conflito — Alemanha, Reino Unido e Rússia — não tinham em comum apenas o fato de serem as maiores potências do planeta no início do século 20.
Também compartilhavam um laço que, até então, parecia garantir a harmonia entre elas: eram governadas por monarcas que faziam parte da mesma família: a da rainha Vitória do Reino Unido, que reinou por 63 anos, até 1901.
E não eram parentes distantes: o kaiser alemão Guilherme 2º, o primeiro a declarar guerra, era o neto mais velho da rainha Vitória.
Seu oponente russo, o czar Nicolau 2º, era casado com Alexandra, outra neta de Vitória; a favorita da monarca britânica, na verdade.
E tanto Guilherme quanto Nicolau eram primos-irmãos de George 5º, também neto da rainha Vitória, que decidiu entrar na Primeira Guerra Mundial ao lado da Rússia e da França.
Mas eles não eram os únicos soberanos que pertenciam à família de Vitória, que teve nove filhos e 42 netos com o marido, o príncipe alemão Albert de Saxe-Coburgo-Gota.
Os descendentes do casal chegaram a ocupar os tronos de 10 nações europeias, razão pela qual a monarca recebeu o apelido de “avó da Europa”.
No entanto, como acontece em muitas famílias, especialmente em uma tão grande e poderosa, havia afinidades, mas também fortes rivalidades.
E foram essas tensões reais que acabariam por se tornar o pano de fundo para uma guerra que envolveria todo um continente, causando milhões de mortes.
Casamenteira
Uma das coisas que mais surpreendem os historiadores sobre a Primeira Guerra Mundial é que ela conseguiu unir dois países historicamente não muito próximos, o Reino Unido e a Rússia, contra uma nação que tradicionalmente era aliada britânica, o império alemão.
Alguns acreditam que para entender isso é preciso voltar à história pessoal do clã Saxe-Coburgo-Gota.
A semente da discórdia pode, inclusive, ser atribuída a dois eventos em particular: os casamentos dos dois filhos mais velhos de Vitória e Albert, também chamados Vitória e Albert.
“Vicky”, como era conhecida a mais velha dos nove irmãos, se casou em 1858 com o príncipe herdeiro da Prússia, que anos mais tarde se tornaria Frederico 3º da Alemanha (após a unificação alemã).
Albert, o primeiro filho do sexo masculino e herdeiro do trono (com o nome de Eduardo 7º), se casou em 1863 com a princesa Alexandra da Dinamarca.
Ambos os matrimônios, orquestrados pela rainha Vitória, preparariam o terreno para o que aconteceria meio século depois.
Primos-irmãos
A princesa Vicky e o príncipe Frederico deram à luz Guilherme após um ano de casados.
Mas a relação com o filho mais velho e herdeiro do trono foi complicada desde o início.
Durante o parto, Guilherme estava virado na barriga da mãe e, na tentativa de tirá-lo, o médico machucou seu braço esquerdo, o deixando incapaz de usá-lo pelo resto da vida.
A mãe nunca foi capaz de se relacionar com o que considerava um “defeito” do filho e manteve com ele uma relação distante ao longo da vida.
Uma experiência diametralmente oposta à vivida pelo primo-irmão de Guilherme, George, o segundo filho dos príncipes de Gales, Albert e Alexandra (o irmão mais velho de George, Albert, faleceu antes de herdar a coroa).
Alexandra da Dinamarca foi uma mãe particularmente amorosa para seus seis filhos.
Muitos a associam a outra princesa de Gales que viveu muito tempo depois: Diana Spencer (mais conhecida como Lady Di), uma vez que ambas eram adoradas pelo povo e consideradas mães exemplares.
Mas, diferentemente de Diana, Alexandra era estrangeira, fato que desempenhou um papel importante na dinâmica familiar.
Como Alexandra era uma grande defensora de seu país, a Dinamarca, ela se sentiu muito ofendida quando parte de sua nação foi anexada pela Prússia e pela Áustria, um ano após seu casamento.
Por este motivo, sua família tinha pouca relação com Vicky e Federico, e os primos Guilherme e George não tiveram uma convivência próxima.
As duas irmãs
Em vez disso, o futuro rei britânico tinha uma relação fraterna com Nicolau, então futuro czar da Rússia.
Isso se deve ao fato de que Nicolau era filho de Dagmar da Dinamarca, irmã de Alexandra, que se casou com o czarévich (herdeiro do trono russo) Alexandre.
E também explica por que George 5º e Nicolau 2º tinham uma semelhança notável.
As irmãs Alexandra e Dagmar eram muito próximas e conhecidas por reunir suas famílias todo verão na Dinamarca, encontros que criariam um vínculo entre a realeza do Reino Unido e da Rússia.
Um laço que se tornaria ainda mais forte quando o jovem Nicolau se apaixonou por Alice de Hesse, a filha alemã de Alice do Reino Unido, terceira filha de Vitória e Albert, que faleceu quando seus filhos eram pequenos.
Ao ficar sob os cuidados da avó materna, Alice teve uma relação particularmente próxima com Vitória, o que permitiu a aproximação entre a monarca e o czar russo, de quem ela inicialmente desconfiava.
Distanciamento
Em contrapartida, Guillerme, seus sete irmãos e irmãs e seus pais não eram convidados para os encontros de verão organizados por Alexandra e Dagmar.
O futuro kaiser tampouco seria capaz de se entrosar com sua família britânica durante seus encontros anuais na famosa regata real de Cowes, conhecida como King’s Cup (“A copa do rei) na Ilha de Wight.
Os historiadores afirmam que o que começou como uma rivalidade esportiva entre Guilherme e seu tio, o futuro rei Eduardo 7º (que sucederia Vitória em 1901), acabou se tornando uma competição para ver que país tinha o maior poderio marítimo.
O primeiro rompimento nas relações entre as famílias ocorreu em 1888, após a morte do pai de Guilherme, o imperador Frederico 3º, que conseguiu reinar apenas por 99 dias na Alemanha, devido a um câncer na garganta.
A primeira coisa que Guilherme fez quando seu pai morreu foi ordenar aos militares que cercassem o palácio real onde sua mãe, a princesa Vicky, ainda vivia, em busca de todos os documentos do monarca, que, ao contrário do filho, era liberal e apoiava um sistema de monarquia constitucional.
Isso ofendeu profundamente o herdeiro do trono britânico, o irmão mais velho de Vicky.
Guilherme se identificava muito mais com o autoritarismo russo, e era um grande admirador do czar Alexandre 3º, pai de Nicolau.
No entanto, Alexandre, um homem de família, ficou horrorizado com o desrespeito com que o novo imperador alemão havia tratado o pai quando ele faleceu.
Novas alianças
Fazendo ouvidos de mercador à rejeição que gerava, o novo kaiser estava convencido de que poderia controlar a política externa do Segundo Reich. Em 1890, ele demitiu o chanceler Otto von Bismarck, arquiteto da unificação alemã.
Isso acabou colocando uma pá de cal na aliança entre a Alemanha e a Rússia. Em seu lugar, o czar Alexandre assinou um pacto com a França.
Em 1904, o Reino Unido firmou seu próprio acordo com a França, sua rival histórica: a chamada Entente cordiale (“acordo cordial”). Três anos depois, fez um pacto com outro grande inimigo do século 19, a Rússia.
Cercada pelas outras potências, a Alemanha se aliou ao Império Austro-Húngaro.
Esses pactos determinariam os dois blocos que se enfrentariam durante a Primeira Guerra Mundial.
O estopim do conflito foi o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria, herdeiro do trono austro-húngaro, e de sua esposa Sofia, em 28 de junho de 1914, durante uma visita a Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina.
O casal foi morto por um grupo que lutava pela libertação da Bósnia e Herzegovina do domínio austro-húngaro e sua integração à Sérvia para a criação de um estado nacional iugoslavo.
O assassinato acionou as diferentes alianças, como um efeito dominó.
O império austro-húngaro declarou guerra à Sérvia. A Alemanha o apoiou e declarou guerra à Rússia e à França, aliadas da Sérvia.
Quando as tropas alemãs invadiram a Bélgica para chegar à França, violaram a neutralidade do país, levando o Reino Unido a se juntar à Rússia e à França na chamada Tríplice Entente.
Em 1915, a Itália se juntou a eles, e os Estados Unidos fizeram o mesmo em 1917.
O bloco adversário era formado pela Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia, a chamada Tríplice Aliança.
Grande guerra
A “Grande Guerra” entre as principais potências europeias duraria quatro anos e acabaria provocando a morte de 17 milhões de soldados e civis, devido ao uso de novas armas químicas, como o gás asfixiante, e modernas metralhadoras e tanques de guerra.
O conflito terminou com a rendição da Tríplice Aliança, em novembro de 1918.
A guerra não só foi devastadora para a Europa, como também atingiu fortemente a monarquia.
Um terço dos cerca de 120 membros da família estendida de Vitória vivia em território inimigo do império britânico.
Dos três primos que desencadearam o conflito, apenas um se saiu vitorioso: George 5º, avô da atual rainha Elizabeth 2ª, que mudou o sobrenome alemão de sua família para o britânico “Windsor”.
Guilherme 2º não só perdeu a guerra, como também perdeu a coroa, tendo que abdicar do trono e fugir para a Holanda. Ele foi o último imperador que a Alemanha teve.
Mas o pior destino foi o de Nicolau 2º, executado alguns meses antes do fim da guerra, junto com sua esposa e filhos, pelos bolcheviques que assumiram o poder, liderados por Lênin, e criaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Assim, a Primeira Guerra Mundial marcou o fim de quatro monarquias que estavam nas mãos dos descendentes de Vitória: Alemanha, Rússia, Áustria-Hungria e Turquia.
E os soberanos que mantiveram suas coroas perderam muito de sua influência e poder, sendo relegados a tarefas mais simbólicas.
Os planos da “avó da Europa” de fortalecer o sistema da monarquia e levar harmonia ao continente por meio de laços reais acabaram resultando no contrário.
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