Por O Globo

BRASÍLIA – O Itamaraty colocou em sigilo 68 telegramas sobre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) trocados entre a embaixada do Brasil em Luanda, capital de Angola, e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) no período entre janeiro de 2018 e setembro de 2020. O sigilo foi imposto em meio a uma das maiores crises enfrentadas pela igreja no país africano, cujo líder, Edir Macedo, é apoiador do presidente Jair Bolsonaro.

Questionado, o Itamaraty disse que a liberação dos telegramas poderia colocar em risco “relações internacionais do país”.

A IURD está em Angola há 28 anos e sua presença no país sempre foi marcada por controvérsias. Desde 2018, no entanto, a situação se agravou. Ela é acusada de submeter pastores a vasectomias, discriminação racial, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Em 2020, a Procuradoria-Geral da República de Angola mandou fechar templos da igreja no país. Além disso, uma disputa interna teria levado à invasão de igrejas por supostos ex-integrantes da Universal. A direção da IURD vem negando as irregularidades.

Em meio às tensões entre o governo angolano e a igreja, um pedido via Lei de Acesso aInformação (LAI) feito pelo GLOBO mostra que dos 68 dos 71 telegramas sobre a IURD trocados entre a Embaixada do Brasil em Luanda e o Departamento de África do Itamaraty, sediado em Brasília, foram colocados em sigilo. Isso representa 95% do total.

Dos telegramas em sigilo, 39 foram classificados como “secretos”, cujo prazo para divulgação é de 15 anos. Os outros 29 foram classificados como reservados, com prazo para divulgação de cinco anos. O Itamaraty não informou a quantidade de telegramas classificados por ano, portanto, não é possível afirmar quantos foram colocados em sigilo durante o governo do presidente Jair Bolsonaro.

Edir Macedo é apontado como um dos principais aliados de Jair Bolsonaro junto ao eleitorado evangélico. Em 2018, ele declarou apoio a Bolsonaro. Em 2020, diante do agravamento da crise entre a igreja e o governo angolano, Bolsonaro enviou uma carta diretamente ao presidente de Angola, João Lourenço, pedindo que as autoridades locais garantissem a integridade física dos membros da IURD no país.

O acesso aos telegramas permitiria compreender pontos importantes sobre a condução da política externa do país, especialmente em cenários marcados por tensões internacionais.
Um dos únicos telegramas liberados, por exemplo, mostra como a crise envolvendo a  Igreja Universal do Reino de Deus no país africano estaria afetando até a vida de brasileiros que não são ligados à instituição.

Segundo o documento,  um missionário brasileiro evangélico da Assembleia Ministerial Cristã de Angola, em Luanda, relatou que, em razão das tensões relacionadas à IURD no país, o templo onde ele atuava foi invadido por angolanos que o agrediram e confiscaram seu passaporte.

“Segundo o brasileiro, sua congregação teria sido invadida por nacionais angolanos contrários à atuação da IURD em Angola e sua família vem sendo vítima de ataques de racismo e xenofobia. Afirmou que, nessa ocasião, ele teria sofrido agressões físicas e teria tido seu passaporte confiscado”, diz um trecho do telegrama.
Procurado duas vezes, o Itamaraty não respondeu se efetivou o repatriamento da família ou não.

Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), David Magalhães, o governo brasileiro protege a Igreja Universal do Reino de Deus como se fosse ela fosse uma empresa.

— Normalmente, os países protegem os interesses do governo e de empresas consideradas estratégicas aos interesses do país. Quando o Itamaraty classifica telegramas sobre a Universal, ele está protegendo a igreja da mesma forma que protege uma empresa ou um braço do governo — afirmou o professor.

Magalhães fez pesquisas acadêmicas com base em telegramas diplomáticos relacionados aos interesses de fabricantes de armas brasileiras e diz que, em muitos casos, o governo colocou documentos em sigilo sob a alegação de que as informações poderiam prejudicar essas companhias e o interesse nacional. Para ele, o sigilo imposto aos telegramas da Universal revelam uma “simbiose” entre a Igreja e o Estado.

— No passado, tive vários pedidos negados pelo governo sob o argumento de que os telegramas poderiam expor sigilo comercial e interesses nacionais. A simbiose entre o Estado e a Universal chegou ao nível de o Estado compreender os interesses dessa igreja como se fossem parte do interesse nacional — disse Magalhães.

Via Lei de Acesso à Informação, o Itamaraty disse que a classificação dos telegramas foi feita de forma legal e teve o objetivo de não prejudicar as “relações internacionais do país”.
“Os expedientes classificados, que, ressalte-se, correspondem a um pequeno percentual dos documentos tramitados pelo Ministério das Relações Exteriores, são classificados como reservados, secretos ou ultrassecretos para não ‘prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais”, disse o Itamaraty.

Apesar dos esclarecimentos via Lei de Acesso à Informação feitos pelo Itamaraty, O GLOBO enviou perguntas à assessoria de imprensa do órgão sobre o assunto, mas não obteve respostas.

Universal diz ser vítima

Por meio de sua assessoria de imprensa, a IURD rebateu as acusações feitas contra ela em Angola. A igreja disse ser vítima de “ataques violentos” e xenófobos promovidos por um grupo de ex-pastores da IURD em Angola e que teriam sido expulsos da instituição por “desvios de conduta moral e prática de crimes”.

A IURD negou a imposição da prática de vasectomia em seus pastores e disse que os “invasores” dos templos da igreja teriam espalhado “mentiras” para confundir a sociedade angolana.

“Para confundir a sociedade angolana, os invasores espalharam mentiras absurdas, como por exemplo uma acusação de ‘racismo’. A verdade é que esses dissidentes têm promovido ataques xenófobos – esses sim, racistas – contra a Universal e seu corpo eclesiástico”, diz a igreja, em nota.

A IURD disse ainda que não pediu apoio ao presidente Bolsonaro para que ele enviasse a carta ao presidente de Angola.

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