Por Pâmela Ramos, G1 Sorocaba e Jundiaí

As memórias são breves e a saudade mora em cada canto e instante vivido. Um sentimento que tem nome, data e às vezes cheiro e cor. Neste sábado (30) é celebrado o Dia da Saudade e, por meio destes detalhes, famílias da região de Sorocaba (SP) que perderam os filhos durante a gestação e após o parto relataram ao G1 como é o sentimento de saudade e a invisibilidade do luto.

De acordo com a psicóloga especialista em luto e psicoterapia breve, Eliane Souza Ferreira da Silva, uma perda gestacional ou neonatal é considerada um luto não reconhecido ou não legitimado pela sociedade.

“Geralmente, de um modo geral acontece muito no início. Fica difícil para a sociedade entender isso por não ter como provar. É muito frustrante e doloroso. É como se aquela pessoa que ia nascer não existisse”, explica Eliane.

E a dor que, para muitos pais é difícil de ser superada, passou a ter outro inimigo: a pandemia da Covid-19, que trouxe as restrições em hospitais e o distanciamento social. No caso de pais que perderam os filhos nos períodos gestacional e neonatal, esses dois fatores foram marcantes em 2020.

G1 conversou com três mães que tiveram que vivenciar esse tipo de luto e aprenderam a lidar com o sentimento de saudade.

Dor e ajuda ao próximo

Juliana Merilin da Silva de Oliveira e Edmilson Vilela de Oliveira Junior criam o grupo Girassol após a morte do filho Gael, em 2019 — Foto: Arquivo Pessoal
Juliana Merilin da Silva de Oliveira e Edmilson Vilela de Oliveira Junior criam o grupo Girassol após a morte do filho Gael, em 2019 — Foto: Arquivo Pessoal

Juliana Merillin da Silva de Oliveira, de 36 anos, é de Sorocaba e conta que perdeu o segundo filho, Gael, em um parto de emergência, em 2019. Até o parto, a gestação estava normal. Porém, houve deslocamento da placenta.

Juliana afirma que, por causa dos efeitos das medicações, ela se recorda de alguns detalhes e tudo estava aparentemente confuso. Quando Gael nasceu já sem vida, inicialmente ela não quis vê-lo, mas com o auxilio de uma doula que estava acompanhando a família, ela carregou no colo e uma foto foi registrada.

“Eu fui sedada e aí entrei em parafuso. Meu marido ficou 40 minutos se despedindo. Por conta da doula, a gente pôde ter esses pequenos momentos. Para mim duraram três segundos. Depois das primeiras semanas, foi difícil lidar com isso.”

Encontros do grupo Girassol aconteciam a cada dois meses, em Sorocaba  — Foto: Divulgação/ Francine Pires
Encontros do grupo Girassol aconteciam a cada dois meses, em Sorocaba — Foto: Divulgação/ Francine Pires

Após sentir falta de um atendimento humanizado e uma rede de apoio, ela planejou junto ao marido a criação do grupo “Girassol”, que oferece apoio às famílias depois de perdas gestacionais, neonatais e infantis.

“Depois que seu filho morre eles falam que você tem quatro horas para retirar o filho morto do hospital, só entregam um papel. Não tivemos nenhum apoio e não passou assistente social no quarto”, relata.

Por meio dessa experiência, Juliana decidiu ajudar outros pais que passam pela mesma situação. Ela conta que o nome do grupo foi escolhido porque significa uma troca na qual um fortalece o outro, assim como o girassol que acompanha a luz.

“Eu queria fazer algo para mostrar à sociedade que os nossos bebês existiram e que fazem parte das famílias. O grupo tem sido, não só para mim, mas para outras mães, um apoio porque nele eu posso curar minhas dores”, relata.

Até março de 2020, os encontros aconteciam a cada dois meses. Porém, devido à quarentena, as atividades foram suspensas. Atualmente, cerca de 70 famílias já passaram pelo grupo. Os agendamentos são feitos pelo Instagram oficial do projeto.

Último encontro ocorreu em setembro de 2019, quando Sorocaba estava na fase verde do Plano SP — Foto: Arquivo Pessoal.
Último encontro ocorreu em setembro de 2019, quando Sorocaba estava na fase verde do Plano SP — Foto: Arquivo Pessoal.

‘Onde mora a dor’

Desenho de Clarisse foi colocado em uma moldura na casa após a perda — Foto: Arquivo Pessoal
Desenho de Clarisse foi colocado em uma moldura na casa após a perda — Foto: Arquivo Pessoal

O rosto de Clarisse foi visto por poucos instantes após o nascimento, mas foi o suficiente para que os traços fossem eternizados em um desenho e também no coração da família. As cinzas dela foram guardadas e os ursinhos de pelúcia continuam em um espaço especial na casa.

A mãe da bebê, Ana Carolina Moreno Pinas, de 37 anos, conta que têm outros três filhos e Clarisse foi a quarta gestação. A família mora em São Roque (SP), mas todo o acompanhamento da gravidez ocorreu em um hospital particular de Sorocaba.

Ao completar 35 semanas de gestação, em agosto de 2020, Ana Carolina notou que a pressão dela estava alterada e foi ao hospital à noite. Era uma quinta-feira chuvosa, o que causava dificuldade para dirigir na rodovia.

“Chagando lá fizeram a medição dos batimentos cardíacos e foi aquele alívio ao ouvir. Minha pressão tinha dado alterada, fiquei até três da manhã para esperar o exame, que não deu nada. O batimento estava bom e falaram que não tinha ultrassom naquele horário”, explica.

No outro dia, Ana Carolina foi ao hospital por volta das 14h e conseguiu fazer o exame de ultrassom depois de duas horas. Foi quando constatou a falta de batimento cardíaco.

O marido dela, Michael Thomas Centomain, estava no carro com as crianças quando Ana Carolina saiu em desespero às pressas do hospital.

“O meu mundo caiu. Eu desabei no chão e ele já viu o que estava acontecendo. Não tem palavras para aquele momento. A minha médica me chamou e os meninos gritavam muito, os mais velhos. Acho que entrei em transe. Ficou aquela dúvida de quando aconteceu”, relata Ana.

Ana Carolina Pinas estava com 35 semanas de gestação quando ocorreu a perda — Foto: Arquivo Pessoal
Ana Carolina Pinas estava com 35 semanas de gestação quando ocorreu a perda — Foto: Arquivo Pessoal

A indução do parto começou após a meia-noite e Clarisse nasceu às 2h45. Segundo Ana Carolina, o cordão umbilical estava muito roxo e havia trombose.

“É muito difícil a gente sair do hospital sem o bebê. A sensação que eu tinha é que e nunca mais queria viver. Os filhos te ocupam o tempo todo, mas não ajudam na dor”, explica.

Ana Carolina já conhecia a Juliana porque ambas faziam parte de um grupo de mães na internet. Quando o filho de Juliana morreu, as duas se afastaram. No entanto, no momento em que Ana saiu do hospital, ela sentiu que precisava do apoio de alguém que passou pela mesma situação.

“Eu contei pra ela o que tinha acontecido e perguntei se dava para continuar vivendo. O fato de eu já ter visto acontecer com outra pessoa me ajudou. Ela se ofereceu para ir ao velório e resolvemos as coisas do velório.”

A família fez uma foto da bebê e conseguiu carregá-la no colo por alguns momentos. Para a psicóloga, Eliane Souza Ferreira da Silva, quando isso ocorre é caracterizado também como um ritual, que auxilia na superação do luto de forma mais leve.

“Em questão da memória, tem que criar um ritual, guardar aquele ursinho ou roupinha. Cada pessoa pode criar um ritual para criar algo que faça sentido para ela. Às vezes o pai não quer, mas a mãe quer. A questão da memória seria como se fosse uma ritualização do processo de perda”, explica Elaine.

Para Ana Carolina, as lembranças a acompanham a todo momento. Clarisse foi muito esperada pela família e os irmãos ainda dormem com o quadro dela ao lado.

“É a dor do que poderia ter sido e não foi. É onde mora a dor. Eu não vi ela de olho aberto e quando você não viveu, é a sombra do que poderia ter sido.

Depois da perda, Ana Carolina buscou junto com o marido um grupo de enfrentamento do luto, além de ter participado de uma roda de conversa no Girassol.

A psicóloga ressalta que encontrar uma rede de apoio se torna essencial nesse processo.

“Seria a questão de contato com os amigos, aqueles com quem você se sinta à vontade, fazer chamadas de vídeo, conversar de uma forma que você se sente confortável”, afirma Eliane.

‘Minhas filhas existiram’

Maria Luisa da Cruz Campos nasceu prematura com 35 semanas de gestação — Foto: Arquivo Pessoal
Maria Luisa da Cruz Campos nasceu prematura com 35 semanas de gestação — Foto: Arquivo Pessoal

O despertar do amor a partir da primeira notícia de gravidez mudou a vida de Mayara Cruz Nogueira, de 24 anos, e do marido Allef Campos Nunes, de 23, de Sorocaba. Quando souberam que seriam pais de uma menina, um sonho se tornou realidade.

“Catarina” foi o nome escolhido para a bebê que morreu na 11° semana de gestação em fevereiro de 2020. Três meses depois de uma tempestade veio a gestação da Maria Luiza.

A alegria de montar o quarto, comprar as primeiras roupas e preparar tudo para a chegada de um novo membro na família se tornou presente novamente. Maria Luiza nasceu prematura com 32 semanas de gestação em novembro do ano passado. Ela morreu três dias depois.

“A Catarina me ensinou o amor de mãe. Ela acendeu o amor em mim. Já a Malu, vi ela nascer e chorar. A diferença é a saudade. As minhas filhas existiram, elas foram reais”, relata Mayara.

Na perda de Catarina, Mayara não quis ficar no hospital para expelir o feto. Quando a morte de um bebê ocorre antes de 20 semanas de gestação, não há velório.

As duas gestações foram distantes da família e amigos devido à pandemia. Na segunda, o casal preferiu não fazer chá de bebê e no momento do parto apenas a mãe de Mayara acompanhou ela. Depois da morte, pôde ver a filha pela última vez.

“Eu só consegui segurar a Malu quando ela estava sem vida. Depois é só a memória que fica. Foi um momento bem triste para todas as famílias no Natal e Ano Novo. A Malu foi muito esperada, então baqueou todo mundo”, conta.

Mayara buscou fazer terapia e o apoio do grupo Girassol. A recomendação médica que recebeu é esperar de seis meses a um ano para uma próxima gestação, já que o maior sonho dela é ser mãe.

“Eu acho que não tem nada melhor do que ter esse apoio de mulheres que compartilharam essa dor. Para mim é muito importante ter o grupo e poder falar dos filhos sem ser julgada. Eu pretendo seguir na terapia e viver esse momento de luto para não guardar isso. “

Acompanhamento

Um dos temas abordados no grupo Girassol é também o não reconhecimento do luto paterno, de acordo com Juliana.

“Os homens são os mais negligenciados nesse período de luto, ninguém olha para aquele homem.
A dor é como a minha. Meu marido teve que ser forte para enterrar o Gael, desmontar berço, depois ele ficou uma semana acamado”, explica Juliana.

A psicóloga, Eliane conta que se o luto durar muito tempo pode ser caracterizado como “luto complicado” e nesses casos é necessário um acompanhamento psicológico com um profissional.

“O luto é um processo natural, mas seguimos em frente. Se eu não consigo sair desse movimento pendular, isso é um problema e, então, são necessários os cuidados. Primeiramente, é preciso validar o sentimento e respeitar o luto”, explica Eliane.

Protocolos e legislação

Em Sorocaba (SP), uma lei entrou em vigor no município em outubro de 2020 e tem o objetivo de conscientizar sobre o impacto emocional que a perda gera para as famílias, além da humanização nos atendimentos médicos em hospitais.

A Lei Gael foi uma iniciativa de Juliana Merilin da Silva de Oliveira, com o marido Edmilson Vilela de Oliveira Junior em homenagem ao filho. O Dia Internacional de Sensibilização à Perda Gestacional e Neonatal foi instituído também na cidade em 15 de outubro.

Segundo Juliana, o atendimento médico em hospitais não acolhe as mães que estão passando pelo momento de perda.

“Tem mulheres que perdem os filhos e entram em crise depressiva depois porque não sabem o que aconteceu com os bebês. Se existissem protocolos, o luto seria menos sofrido, menos pesado”, conta.

O ginecologista e obstetra, Danylo Honorato, explica que no Brasil a falta de espaço físico adequado para acomodar as mulheres é uma das maiores dificuldades porque muitas vezes uma família que perde um filho fica no mesmo quarto daquela que está com um bebê que nasceu.

“No hospital público tem uma demanda maior de pacientes e consequentemente um maior volume de perdas gestacionais. Esses hospitais, na maioria das vezes, são muito debilitados na questão física para acolher essas mulheres. Elas não têm um espaço para ficar sozinha”, explica.

Segundo Danylo, a carência de como lidar com aspectos emocionais nas perdas também se reflete na formação de médicos e enfermeiros nas universidades. Ele passou a pesquisar sobre o assunto após a perda do Gael que Juliana enfrentou. Além disso, ele também enfrentou uma perda com a esposa.

“Eu levei a minha perda como uma questão técnica, vi pelo ultrassom que não tinha batimentos cardíacos e precisei me conformar. Por não terem esses protocolos estabelecidos, a gente não sabe como lidar. É difícil para os profissionais terem empatia por algo que nunca viveram e apenas conhecem o lado técnico.”

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