Por: Kennedy Alecrim / Redação
Em uma realidade cada vez mais mediada por tecnologia, pressão financeira e exigências de produtividade, o campo se tornou um espaço de silêncio denso.

A paisagem rural, que por muito tempo simbolizou estabilidade, tradição e pertencimento, agora se mistura às cores frias da modernidade líquida descrita por Zygmunt Bauman: um mundo em que relações são instáveis, identidades são voláteis e os vínculos sociais se desfazem com a mesma facilidade com que foram construídos. No campo, essa fluidez tem um custo: o aumento silencioso do sofrimento psíquico, da alienação e da depressão entre trabalhadores rurais.
Nos Estados Unidos, o dado mais alarmante veio da National Rural Health Association: agricultores e trabalhadores do setor agropecuário possuem uma taxa de suicídio 3,5 vezes maior do que a média da população masculina. Uma reportagem publicada em abril de 2025 pelo The Guardian denunciou essa crise, destacando a urgência de soluções adaptadas às realidades emocionais e culturais do campo. Uma das iniciativas que ganhou destaque foi o “modelo LandLogic”. Nessa abordagem, terapeutas utilizam imagens aéreas e mapas das propriedades para facilitar o diálogo com agricultores. Em vez de abordagens clínicas tradicionais, que muitas vezes soam distantes e estigmatizadas para quem vive no meio rural, o LandLogic permite que o produtor visualize sua terra, suas perdas e transformações, conectando esses elementos a sentimentos de frustração, esgotamento ou culpa. É a terra que fala, e é por ela que se inicia a escuta.
Na Austrália, o sofrimento mental também tem tomado proporções preocupantes. A psicóloga e produtora rural Steph Schmidt, conhecida como “Farm Life Psychologist”, denunciou à imprensa que muitos recursos de apoio estão presos na burocracia, enquanto agricultores enfrentam secas extremas, pressão de mercado e isolamento social. Em algumas regiões de Tasmânia, condições climáticas desfavoráveis, custos operacionais elevados e a queda nos preços pagos pelos produtos estão levando os trabalhadores ao limite da exaustão emocional. Isso se soma à cultura da força e do silêncio, em que pedir ajuda ainda é visto como fraqueza.
Na Índia, a situação assume contornos ainda mais dramáticos. Estima-se que mais de 300 mil suicídios de agricultores ocorreram desde 1995, motivados principalmente por endividamento, fracasso de safras e pressões familiares. No estado de Punjab, mais de mil suicídios foram registrados apenas entre 2017 e 2021. As crenças culturais e espirituais sobre o sofrimento mental, muitas vezes associadas a punições cármicas, dificultam a busca por tratamento e reforçam a invisibilidade do adoecimento.

Essas realidades, tão distintas em geografia e cultura, convergem em um mesmo ponto: a solidão existencial do produtor rural na modernidade. Sob pressão constante por produtividade, conectado a mercados globais e desconectado de suas referências tradicionais, o trabalhador do campo se vê cada vez mais como uma peça substituível em um jogo cujo tabuleiro ele não controla. Como disse Bauman, a modernidade líquida dissolve as certezas, e o campo, antes sinônimo de enraizamento, hoje é também território de incertezas e dissolução identitária.
Esse processo também está presente no Brasil, ainda que menos documentado em reportagens. A expansão do agronegócio, a mecanização do trabalho e a pressão por influência digital têm gerado uma nova forma de adoecimento. O produtor não apenas precisa produzir mais, com menos recursos e menos mão de obra, como também precisa “mostrar que está bem”. As redes sociais transformaram a figura do produtor em um influenciador do campo, impondo uma nova carga simbólica: a de ser bem-sucedido não apenas na colheita, mas também na aparência da sua fazenda, no estilo de vida que exibe, na narrativa que sustenta.
O resultado é uma mistura de alienação e esgotamento. Alienação porque o produtor deixa de reconhecer sentido em seu trabalho quando este se torna apenas um meio para manter aparências ou saldar dívidas impagáveis. E esgotamento porque não há espaço para falhar, para descansar ou simplesmente para ser. Como alerta o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, vivemos uma era de autoexploração, em que a exigência de desempenho se internaliza e se transforma em culpa e autossuficiência tóxica. O campo não está imune a isso.

Diante desse cenário, a urgência de políticas públicas, iniciativas comunitárias e escuta qualificada se torna evidente. A experiência do LandLogic, as vozes como a de Steph Schmidt e os estudos que emergem em diversas partes do mundo mostram que é possível enfrentar esse adoecimento, desde que se compreenda que o sofrimento no campo não é apenas fruto do clima ou da economia. Ele é, sobretudo, fruto de uma estrutura que rompeu com o sentido simbólico do trabalho rural. Reconstituir esse sentido, oferecer espaços de partilha, reduzir o estigma e promover o pertencimento são caminhos essenciais para que a terra volte a reconhecer seus filhos. Porque o silêncio do campo não é paz. Muitas vezes, é pedido de ajuda.
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Reportagens e fontes jornalísticas
- The Guardian (2025, abril 10). Farmers face one of the highest rates of suicide. This social worker believes the solution is buried in their land.
- https://www.theguardian.com/environment/2025/apr/10/farmers-mental-health-crisis-trump
- Adelaide Now (Austrália). Farm Life Psychologist Steph Schmidt urges mental health support for farmers.
- https://www.adelaidenow.com.au/news/south-australia/farmers-rural-folk-need-mental-health-support-now-urges-farm-life-psychologist-steph-schmidt/news-story/e84e6a3de80c25a058a6d432671a1930
- Herald Sun (Austrália). Farmers sound the alarm over mental health crisis in Tasmania.
- https://www.heraldsun.com.au/news/tasmania/unfavourable-seasonal-conditions-taking-toll-on-tasmanian-farmers-prompting-mental-health-concerns/news-story/acc727aa4414be5b2e9dde2206207622
- Time Magazine (2024, abril). America’s Young Farmers Are Burning Out. I Quit, Too.
- https://time.com/6966324/america-young-farmers-exhaustion-essay
- Wikipedia. Farmers’ suicides in India (atualizado em 2025).
- https://en.wikipedia.org/wiki/Farmers%27_suicides_in_India
- FB.org (American Farm Bureau Federation). Farmers Face a Mental Health Crisis
- https://www.fb.org/in-the-news/modern-farmer-farmers-face-a-mental-health-crisis-talking-to-others-in-the-industry-can-help
Artigos científicos e acadêmicos
- Ayinde, O. et al. (2023). Stress, anxiety, depression, and burnout among farmers in Nigeria and the UK. Facets Journal, 8, 1–16. https://www.facetsjournal.com/doi/full/10.1139/facets-2023-0230 DOI: 10.1139/facets-2023-0230
- Franco, T. (2014). Alienação do trabalho: despertencimento social e desenraizamento em relação à natureza. Cadernos CRH, 27(70), 289-304. https://www.scielo.br/j/ccrh/a/MTqm5bSgk3h64tqMqZZXXRQ DOI: 10.1590/S0103-49792014000200006
Referências teóricas utilizadas
- Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
- Byung-Chul Han (2017). Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes.
- Dejours, C. (1994). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez.
- Graeber, D. (2018). Bullshit jobs: a theory. Nova York: Simon & Schuster.