Por: Kennedy Alecrim / Redação
Vivemos em um tempo em que a digitalização das relações de trabalho, a ascensão das plataformas e o uso intensivo de algoritmos criaram uma realidade completamente nova para empresas, trabalhadores e para a sociedade em geral. Apesar disso, grande parte das críticas e análises sobre esse cenário ainda se apoiam em categorias antigas, herdadas de momentos históricos que não captam toda a complexidade atual. A insistência em enxergar o presente apenas por lentes simplistas, baseadas em oposições como liberdade contra opressão ou humanização contra desumanização, empobrece a compreensão e nos leva a repetir diagnósticos que já não são suficientes. É justamente nesse ponto que surge a provocação: estamos em um novo mundo, mas seguimos interpretando com regras velhas?

Um exemplo claro desse descompasso aparece nos estudos recentes sobre a digitalização da gestão de pessoas. Pesquisa publicada por Deng, Li, Wang e Zhu em 2024 mostra que a digitalização dos processos de Recursos Humanos é um fenômeno ambíguo, que traz ganhos e perdas. O uso de registros algorítmicos, isto é, a coleta contínua de dados sobre o desempenho dos empregados, pode ser percebido como positivo quando há alinhamento entre a necessidade do trabalhador e a oferta da organização. Nesses casos, o empregado tende a se sentir valorizado e considerado um insider.
Mas quando há desajuste, a percepção se torna negativa e aparecem interpretações de vigilância excessiva, insatisfação ou invasão de privacidade. No entanto, é preciso relativizar. A chamada vigilância pode ser entendida como monitoramento natural, próprio de qualquer processo produtivo que exige coordenação. A pressão, frequentemente citada como um problema, é uma característica estrutural do trabalho e varia de intensidade conforme o ciclo da organização. Mesmo a insatisfação, apontada em pesquisas, muitas vezes é confundida com ausência de satisfação, e a diferença conceitual raramente é observada nos instrumentos de coleta de dados.
Outro caso vem da literatura sobre plataformas digitais. Vallas e Schor, em artigo de 2020 publicado na Annual Review of Sociology, analisam a chamada gig economy e criticam a visão homogênea que classifica todos os trabalhadores como precarizados. O estudo mostra que a realidade é heterogênea. Muitos motoristas de aplicativos, por exemplo, não dependem exclusivamente dessa renda e valorizam a flexibilidade e a autonomia relativa que encontram nesse tipo de trabalho.
É claro que existem problemas graves, como a falta de benefícios sociais, a instabilidade da remuneração e a ausência de garantias de longo prazo. Mas reduzir toda a experiência ao rótulo de exploração desumanizante é ignorar os aspectos motivacionais que a liberdade e o desafio trazem para boa parte dos trabalhadores. A questão, na verdade, não é a suposta desumanização promovida pelas empresas, mas a dificuldade de autogestão social e financeira enfrentada pelos motoristas. A liberdade exige planejamento e, sem ele, os riscos se transformam em armadilhas.
Quando observamos os dois casos em conjunto, percebemos que tanto nas organizações tradicionais quanto nas plataformas digitais o problema central não é a desumanização em si. As empresas não nasceram para ser humanas, mas para ser funcionais, eficientes e justas dentro de regras processuais. Essa lógica vem desde a administração científica de Taylor e dos estudos de tempos e movimentos do casal Gilbreth. A impessoalidade da pessoa jurídica existe justamente para evitar favoritismos e garantir previsibilidade nas decisões. Quando se fala em falta de humanidade, o que muitas vezes se está dizendo é que os critérios não foram transparentes ou que a autonomia do trabalhador foi restringida.
Mas ambos os pontos podem ser interpretados de forma mais complexa. Transparência pode ser resolvida com softwares de feedback em tempo real, que funcionam como árbitros de um jogo, apontando em linguagem clara o que está dentro e fora das expectativas. Já a autonomia não é um valor absoluto, pois em processos interdependentes é necessário limitar a ação individual para garantir o fluxo coletivo.
A percepção de justiça também merece cuidado. Para muitos trabalhadores, justiça é sinônimo de condescendência com erros cotidianos que atrapalham processos. Mas se as regras foram estabelecidas e aceitas desde o contrato, a verdadeira justiça está em segui-las. O que ocorre, muitas vezes, é um choque entre visões: de um lado, a justiça formal e processual das organizações; de outro, a justiça vivida e subjetiva dos indivíduos. Essa tensão não deve ser ignorada, mas também não pode ser resolvida apenas pelo viés da crítica moral às instituições.
Um exemplo jornalístico mostra bem como essa discussão é mais complexa do que parece. Em março de 2024, a agência Reuters publicou uma reportagem sobre a proposta do governo brasileiro de regulamentar o trabalho em aplicativos de transporte. O texto apresenta tanto a motivação de oferecer mais direitos sociais aos motoristas quanto as limitações de não criar vínculo empregatício pleno. A matéria não trata os motoristas como vítimas passivas, mas mostra a coexistência de demandas distintas: de um lado, proteção social; de outro, preservação da flexibilidade que muitos valorizam. É um retrato equilibrado, distante das simplificações que marcam boa parte do debate público.
Esse cenário nos leva a uma reflexão mais profunda. O comportamento humano tende à resiliência: indivíduos procuram resistir, adaptar-se e recuperar equilíbrio diante de crises. Já as organizações, por sua natureza, tendem à antifragilidade: utilizam os choques e as crises como oportunidade de aprendizado e crescimento estrutural. Essa assimetria gera tensões inevitáveis. Enquanto os indivíduos são pressionados a suportar e se recompor, as instituições conseguem se fortalecer. A diferença entre resiliência e antifragilidade ajuda a explicar por que as percepções de injustiça e desumanização aparecem de forma tão recorrente. O que se vê como exploração pode, sob outra ótica, ser apenas a consequência dessa lógica estrutural distinta.

No meio rural, essa tensão entre percepções simplistas e realidades complexas aparece de forma ainda mais evidente. Muitos diagnósticos sobre a vida no campo tendem a reduzir o produtor rural à figura de vítima do agronegócio ou à do herói resiliente que suporta todas as adversidades. A realidade, no entanto, é mais ambígua. Assim como motoristas de aplicativos valorizam a flexibilidade, muitos produtores enxergam no cooperativismo ou na integração com grandes cadeias produtivas não apenas dependência, mas também oportunidade de acesso a crédito, tecnologia e mercados. Ao mesmo tempo, os mesmos arranjos que oferecem proteção criam pressões e mecanismos de controle que podem ser percebidos como vigilância e perda de autonomia. Interpretar esses contextos apenas pelo prisma da exploração ou da resistência heroica é aplicar regras velhas a um mundo rural em constante transformação.
A digitalização da gestão também começa a alcançar o campo, seja por aplicativos de monitoramento da produção, softwares de gestão de insumos ou programas de crédito vinculados ao desempenho. Para alguns, essas ferramentas significam invasão e aumento da pressão. Para outros, representam transparência, previsibilidade e acesso a informações que antes estavam restritas às grandes empresas. Nesse ponto, a lógica se repete: o comportamento humano no campo tende à resiliência, ajustando-se às novas condições, enquanto as organizações rurais, sejam cooperativas, associações ou empresas, se tornam antifrágeis, fortalecendo-se a cada crise. A análise que desconsidera essa dialética corre o risco de produzir diagnósticos parciais e políticas mal calibradas para a realidade rural brasileira.
Se o mundo é novo, mas as análises continuam baseadas em regras velhas, a cegueira não está na realidade, mas na forma de interpretá-la. O desafio intelectual e social do nosso tempo é atualizar nossas lentes para compreender que há riscos e oportunidades coexistindo, que há sofrimento e motivação misturados, que há perdas de autonomia e ganhos de flexibilidade ao mesmo tempo. Só assim conseguiremos construir diagnósticos mais justos, políticas públicas mais eficazes e práticas organizacionais que realmente correspondam à complexidade do presente.
Artigos científicos
- Deng, C., Li, H., Wang, Y., & Zhu, R. (2024). The double-edged sword in the digitalization of human resource management: Person-environment fit perspective. Journal of Business Research, 180, 114738. https://doi.org/10.1016/j.jbusres.2024.114738
- Vallas, S., & Schor, J. B. (2020). What do platforms do? Understanding the gig economy. Annual Review of Sociology, 46, 273–294. https://doi.org/10.1146/annurev-soc-121919-054857
Livro de referência
- Taleb, N. N. (2012). Antifragile: Things that gain from disorder. Random House.
Notícia jornalística
- Reuters. (2024, 4 de março). Brazil’s Lula proposes law to regulate labor on ride-hailing apps. Reuters. https://www.reuters.com/world/americas/brazils-lula-proposes-law-regulate-labor-ride-hailing-apps-2024-03-04