Por: Kennedy Alecrim / Redação
As estatísticas oficiais sobre saúde mental no Brasil expõem um paradoxo. De um lado, levantamentos populacionais sugerem que a prevalência de depressão e outros transtornos mentais comuns é menor nas áreas rurais do que nas urbanas. De outro, há evidências de que o ritmo de crescimento do sofrimento psíquico no campo é mais acelerado, com taxas de suicídio superiores às registradas em cidades de porte semelhante. Esse contraste revela que os números, na prática, não fecham — e a invisibilidade do campo é parte estrutural do problema.

Pesquisas epidemiológicas clássicas no Brasil mostraram que os transtornos mentais comuns atingem cerca de 20% da população urbana (Lima, 1999; Andrade et al., 2002). Esses índices se mantêm consistentemente maiores nas cidades, em comparação com levantamentos em áreas rurais. Essa diferença foi interpretada por muito tempo como reflexo de fatores protetivos do campo, como maior contato com a natureza, vínculos comunitários mais fortes e menor exposição a estressores típicos da vida urbana.
Contudo, dados mais recentes apontam na direção oposta. No Rio Grande do Sul, estado historicamente marcado por elevadas taxas de suicídio, os registros oficiais mostram que a mortalidade autoprovocada é mais comum em municípios rurais do que nas capitais (SES/RS, 2022). No Canadá, um estudo nacional revelou que 76% dos agricultores relataram altos níveis de estresse, 57% apresentaram sintomas de ansiedade e 34% sinais de depressão (Jones-Bitton et al., 2020). Nos Estados Unidos, a taxa de suicídio entre agricultores chega a ser 3,5 vezes maior do que na população geral (Rosmann, 2017). Na Austrália, pesquisas mostraram que masculinidade hegemônica, isolamento e falta de serviços especializados contribuem para níveis mais altos de ideação suicida no campo (Judd et al., 2006). Esses dados indicam que, embora em números absolutos as cidades ainda concentrem mais diagnósticos, o crescimento da depressão e do adoecimento mental no campo é mais rápido e mais preocupante.
Outro elemento essencial para compreender esse paradoxo é a resistência em autodeclarar problemas emocionais no meio rural. O estigma cultural em torno da depressão e da ansiedade, associados à ideia de fraqueza, faz com que produtores evitem reconhecer seus sintomas em pesquisas ou inquéritos de saúde. Além disso, a masculinidade hegemônica reforça a ideia de que “homem do campo não adoece”, reduzindo a procura por serviços especializados (Judd et al., 2006). Soma-se a isso a desconfiança em relação a pesquisadores ou instituições externas, o que gera respostas defensivas e minimizadas. O resultado é subnotificação estrutural: as estatísticas oficiais captam menos casos do que existem de fato.
A invisibilidade não se limita à autodeclaração. O Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/DATASUS) registra suicídios por local de ocorrência e características gerais, mas não diferencia se a vítima era agricultor, pecuarista ou trabalhador urbano. Assim, um produtor rural que morre em sua propriedade é contabilizado apenas como mais um suicídio no cômputo geral. Essa falha estrutural reforça a distorção: o urbano aparece com dados mais claros, enquanto o rural permanece fragmentado entre números agregados e relatos comunitários.
Movimentos sociais e entidades rurais tentam preencher essa lacuna, denunciando dezenas de suicídios de agricultores em curtos intervalos de tempo. Essas denúncias têm impacto político, mas carecem de sistematização científica. Além disso, a ampla divulgação de tragédias em redes sociais sem informações de prevenção pode reforçar o efeito copycat (Phillips, 1974; Niederkrotenthaler et al., 2010), agravado pela lógica algorítmica que privilegia conteúdos emocionais (Vosoughi, Roy, & Aral, 2018; Brady et al., 2017).
O resultado é um quadro de invisibilidade estrutural:
- O urbano é descrito em números consolidados, revisados e padronizados.
- O rural surge como estatística incompleta ou como denúncia simbólica.
- A resistência cultural em assumir fragilidade psicológica reforça a subnotificação.
- O crescimento mais acelerado do adoecimento no campo se mistura a estatísticas que parecem sugerir o contrário.
Enquanto essa contradição não for enfrentada por meio de levantamentos oficiais que estratifiquem saúde mental por setor ocupacional e território, o retrato seguirá distorcido. A saúde no campo continuará invisível nas estatísticas, mesmo quando a realidade grita em silêncio nos relatos de famílias rurais.
Referências
- Andrade, L., Walters, E. E., Gentil, V., & Laurenti, R. (2002). Prevalence of ICD-10 mental disorders in a catchment area in the city of São Paulo, Brazil. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 37(7), 316–325. https://doi.org/10.1007/s00127-002-0543-9
- Brady, W. J., Wills, J. A., Jost, J. T., Tucker, J. A., & Van Bavel, J. J. (2017). Emotion shapes the diffusion of moralized content in social networks. Proceedings of the National Academy of Sciences, 114(28), 7313–7318. https://doi.org/10.1073/pnas.1618923114
- Jones-Bitton, A., et al. (2020). Stress, anxiety, depression, and resilience in Canadian farmers. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 55(2), 229–236. https://doi.org/10.1007/s00127-019-01738-2
- Judd, F., Jackson, H., Fraser, C., Murray, G., Robins, G., & Komiti, A. (2006). Understanding suicide in Australian farmers. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 41(1), 1–10. https://doi.org/10.1007/s00127-005-0007-1
- Lima, M. S. (1999). Transtornos mentais comuns: conceito e prevalência. Revista Brasileira de Psiquiatria, 21(1), 6–15. https://doi.org/10.1590/S1516-44461999000100003
- Niederkrotenthaler, T., Voracek, M., Herberth, A., Till, B., Strauss, M., Etzersdorfer, E., … & Sonneck, G. (2010). Role of media reports in completed and prevented suicide: Werther v. Papageno effects. The British Journal of Psychiatry, 197(3), 234–243. https://doi.org/10.1192/bjp.bp.109.074633
- Organização Mundial da Saúde. (2017). Preventing suicide: A resource for media professionals. Geneva: WHO.
- Phillips, D. P. (1974). The influence of suggestion on suicide: Substantive and theoretical implications of the Werther effect. American Sociological Review, 39(3), 340–354. https://doi.org/10.2307/2094294
- Rosmann, M. R. (2017). Behavioral health of farmers. Journal of Agromedicine, 22(1), 3–5. https://doi.org/10.1080/1059924X.2016.1248300
- Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. (2022). Plano Estadual de Prevenção ao Suicídio 2022–2025. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/202206/13120347-plano-estadual-cepvps-26-05-22.pdf
- Vosoughi, S., Roy, D., & Aral, S. (2018). The spread of true and false news online. Science, 359(6380), 1146–1151. https://doi.org/10.1126/science.aap9559