Por Mariléa de Almeida – Especial para o UOL

A Abolição da Escravatura no Brasil é um dos capítulos mais mal resolvidos na história. Nos anos que seguiram a 1888, uma pessoa negra que era associada à condição de liberta carregava os estigmas do cativeiro. Essa situação impunha obstáculos para o exercício de sua liberdade e cidadania.

A historiadora Hebe Mattos, em seu livro Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, detalha que em 1894, na comarca de Campos, no Norte Fluminense do Rio de Janeiro, o lavrador Domingos Ferreira Crespo, abriu um inquérito contra sua vizinha Joana Maria Conceição, denunciando-as sobre os insultos proferidos por ela.

No documento registrado no Cartório de Terceiro Ofício de Campos entre os Processos Criminais de 1894, ele fez saber sobre sua história:

Neste dia 12 de setembro do corrente, pelas 8 horas da noite mais ou menos a referida acusada de sua casa dirigiu palavras insultantes contra o queixoso, e dirigindo-se após, até a estrada pública para mais aproximar-se à casa do dito queixoso continuou nos impropérios dizendo em altas vozes que o queixoso era um negro, feiticeiro e alcoviteiro dos seus filhos. Foi então que o mesmo dirigiu-se à autoridade local pedindo providências, o que não se realizou por motivos estranhos à vontade do queixoso. Ora, como pelos fatos narrados é evidente que a acusada cometeu o fato criminoso especificado no artigo 39, parag. 4, 6, 19, vem por isso requerer a V. Excia., se digne a ordenar intimação da acusada e das testemunhas arroladas.

Nesse período e região, a designação de “negro” expressava um componente racial usado para desqualificar a pessoa. Sem falar que a ideia de liberdade era ainda mobilizada como atributo máximo do branco. Desse modo, a vizinha, ao chamá-lo de “negro feiticeiro”, reforçava estigmas raciais.

Indignado, Domingos Ferreira Crespo deslocou-se mais de quarenta quilômetros até a cidade de Campos para abrir um processo contra a vizinha. O documento cita o artigo 39 do Código Penal de 1890, que detalha sobre as condições agravantes do crime, destacando-se os parágrafo 4, 6 e 19, que respectivamente informam: “Ter o delinquente impelido por motivo reprovado ou frívolo”; “Ter o delinquente procedido com fraude, ou com abuso de confiança”; “Ter o delinquente reincidido”.

Por fim, Domingos Ferreira Crespo, não obteve sucesso porque o processo aberto em Campos não teve continuidade. De todo modo, a oposição do lavrador de ser denominado de negro não implicou para ele, como para maioria dos casos da época, em assumir uma atitude valorativa de branqueamento, mas sim de rejeitar que o estigma da escravidão fosse transformado em um obstáculo para o exercício de sua cidadania.

 racismo e suas camadas de temporalidade

Divulgada em 9 de janeiro, uma pesquisa encomendada pelo Observatório Febraban ao Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas), com a finalidade de captar as expectativas sobre os 200 anos da independência do Brasil, revelou que para 31% das pessoas, a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, foi o momento histórico mais importante do país. Para 18% foi a Independência, seguido da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889; da ditadura militar, em 1985; e o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016. Entre as pessoas mais jovens, 18 a 24 anos, a abolição da escravidão também foi o momento histórico mais significativo do país.

Este interesse pela Abolição demonstrado nos números remete, em grande medida, à percepção da expressividade numérica de pessoas negras em nossa sociedade, que constituem 54% da população brasileira (IBGE), e vivenciam os efeitos do racismo em seu cotidiano. Ao mesmo tempo, o interesse relaciona-se ao contexto atual que, após o assassinato de George Flyod, em 25 de maio de 2020, nos EUA, pelo policial branco Derick Chauvin, favoreceu o debate sobre o racismo antinegro em escala global.

O interesse pela Abolição, conforme revelou a pesquisa, demonstra que o debate público sobre o tema não pode ficar restrito ao 13 de maio. Ainda temos perguntas necessárias a responder, como: o que podemos aprender sobre os anseios da população brasileira, quais são os embates acerca da memória sobre esse evento e o processo do qual ele faz parte. O que eles dizem sobre a cultura histórica do tempo presente? Ou seja, as práticas racistas cotidianamente vivenciadas expressam que o passado não passou.

Após 134 anos da extinção “oficial”, basta ver os dados sobre trabalho escravo no país, que está longe de ser extinto. De acordo com Painel e Situação Estatística da Inspeção do Trabalho no Brasil, somente em 2021, 1.937 trabalhadores foram resgatados de atividades análogas à escravidão.

Na semana passada, inclusive, o caso de uma mulher, que trabalhava 32 anos como empregada doméstica na residência de um pastor em Mossoró (RN), ganhou grande repercussão. Segundo auditores fiscais do trabalho, ela começou a trabalhar na casa com 16 anos, sofrendo abuso e assédio sexual do empregador. Seu caso nos relembrou o de Madalena Gordiano, que trabalhou dos oito aos 46 anos na mesma condição. Ela nunca teve salário, dias de folga ou férias.

Esses, e tantos outros casos que não ganham repercussão, explicitam que a sociedade brasileira convive simultaneamente com práticas racistas que evocam outras temporalidades. Quando um país não elabora os efeitos de um trauma coletivo, como é o racismo, optando por apagar a memória do evento, esse recalque coletivo produz repetições nefastas. Daí, a função reparatória da história que, por meio do testemunho, favorece o reconhecimento social da experiência traumática.

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