Por Correio Braziliense
Feminicídio: O ciclo de violência que aprisiona mulheres em relacionamentos tóxicos e as torna vítimas daqueles que um dia amaram se reproduz no Distrito Federal. O ano de 2020 se encerrou com 17 mortas em razão do gênero.
Em dos um dos crimes mais chocantes, mãe e filha foram assassinadas, em dezembro. Nos primeiros dias deste ano, quatro tentativas de feminicídio mostraram que o caminho para mudar este cenário está distante e, na sexta-feira, o desfecho criminoso de uma relação conturbada, com agressões verbais e físicas constantes, resultou na primeira vítima desse tipo de delito na capital federal.
Isabel Ferreira Alves, 37 anos, morreu após ser atingida com uma facada no tronco, em casa, na QNN 3 de Ceilândia Norte. O marido, Marcos Soares Pereira, 36, foi preso em flagrante na tarde de ontem, por policiais da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam 2).
Pensar em ações estratégias para combater o feminicídio deve ser o foco das autoridades, afirmam especialistas. Entre as iniciativas do combate à violência doméstica, estão o reforço no policiamento, projetos comunitários e patrulhas, bem como aprimoramento da legislação do país (leia Três perguntas para). Em entrevista ao Correio, Ana Maria Ferreira, 35, irmã de Isabel, deu detalhes da relação entre o casal e resumiu: “Ela vivia em uma prisão”.
Natural de Santa Inês (MA), a auxiliar de limpeza chegou a Brasília há 12 anos e teve três filhos, fruto de outro relacionamento. Em 2014, Isabel e Marcos conheceram-se e começaram a namorar. Desde o começo, a relação foi marcada por agressões. A reportagem apurou que Isabel chegou a registrar oito ocorrências criminais contra o marido por delitos diversos, entre eles, lesão corporal, ameaças, violação de domicílio e crimes de dano. “Ele a agredia constantemente. Sempre pedi para que ela se separasse, mas, infelizmente, minha irmã não me escutou e esse monstro tirou a vida dela”, contou Ana Maria.
Isabel trabalhava como auxiliar de serviços gerais em um shopping de Águas Claras durante o dia inteiro. Na noite do crime, na sexta-feira, a mulher chegou em casa antes do horário previsto, por volta das 20h30. O imóvel onde ela morava fica em um terreno com outros dois barracos. “Ela chegou e foi direto na minha casa. Achei estranho e a questionei. Ela me disse que o marido ia pegar as coisas para sair de casa, mas ela estava com medo de ele levar, também, os pertences dela”, contou Celina Barbosa, 40, vizinha da vítima.
A mulher ficou pouco tempo na casa da colega e logo seguiu para casa. Poucos minutos se passaram até Celina ouvir um grito: “Para”. “Meu outro vizinho me gritou, pedindo socorro. Quando cheguei à casa da Isabel, eu a vi caída, sangrando muito. Ela olhou para mim, deu o último suspiro e fechou os olhos. Nunca mais vou esquecer aquela cena. Ela era uma pessoa guerreira, batalhadora e fazia de tudo pelos meninos”, lamentou.
O assassinato foi presenciado pelo filho caçula da vítima, de 15 anos. Testemunhas relataram que, depois de matar a mãe dele, o acusado tentou esfaquear o adolescente, que correu e se escondeu em um cômodo da casa. No momento do crime, Marcos estava sob efeito de álcool e de drogas quando matou a mulher, afirmam os vizinhos. Ele teria pedido dinheiro a ela para comprar mais bebida. Com a negativa, o suspeito foi até a cozinha, pegou uma faca e atacou a vítima.
Marcos foi preso em menos de 24 horas por investigadores da Deam 2, após denúncia anônima. O homem estava na casa de um parente, em Ceilândia, não resistiu à prisão e confessou o feminicídio na delegacia. Em depoimento, o agressor contou que queria sair de casa e os dois tiveram uma discussão. “Ele teria pedido dinheiro a ela, mas a vítima falou que não tinha o valor e cogitou pedir aos vizinhos. Depois disso, ele disse que a matou com, ao menos, uma facada”, detalhou a delegada-adjunta da Deam 2, Karina Duarte. Apenas o laudo cadavérico poderá precisar a quantidade de facadas e o local exato do ferimento.
Afastada da família
Na semana passada, Isabel entrou em contato com familiares do Maranhão e contou que o marido a estava agredindo os filhos dela. “Em março, estive em Brasília. Nesse período, ela estava separada do Marcos, mas os meus sobrinhos me falaram que ela queria reatar o relacionamento e disseram estar com medo. Eu tentei ajudar de todas as formas, chorei e pedi tanto para que ela não voltasse”, lamentou a irmã Ana Maria.
Em agosto de 2019, o homem foi preso em crime previsto na Lei Maria da Penha, mas Isabel retirou a queixa e ele recebeu alvará de soltura em abril do ano passado, quando deixou o Complexo Penitenciário da Papuda. O Correio teve acesso à ocorrência da época. O registro mostra que policiais receberam uma denúncia de violência doméstica. Ao chegarem ao endereço da mulher, os PMs depararam-se com a porta da residência trancada e ouviram gritos do acusado, dizendo que iria matá-la.
Os policiais deram ordem para que ele abrisse a porta, mas o homem desobedeceu e impediu que Isabel deixasse a residência. No chão, havia respingos de sangue. A violência só teve fim no momento em que a dona do imóvel chegou ao local com a chave e abriu a porta. Isabel foi ferida na mão e encaminhada ao Hospital Regional de Ceilândia (HRG).
Durante o interrogatório, ela disse que estava sendo mantida em cárcere privado pelo marido e havia levado três facadas há anos. “Em 2020, ela não registrou nenhuma ocorrência. Mas acreditamos que as agressões tenham continuado”, afirmou a delegada.
Como conta a irmã, Isabel planejava visitar a família no Maranhão este mês, mas foi impedida pelo companheiro. Segundo ela, a auxiliar de limpeza não podia entrar em contato com os parentes e tinha o celular rastreado pelo agressor. “Ele não a deixava se aproximar. Só ligava para a gente escondido e rápido. Ele a manipulava. Minha irmã não estava vivendo”, lamentou Ana Maria.
A irmã saiu do Maranhão e deve chegar a Brasília hoje para a liberação do corpo. Provavelmente, Isabel será sepultada na cidade de origem.
Outras mortes
Dados mais recentes da Secretaria de Segurança Pública do DF mostram que 13 mulheres foram vítimasa de feminicídio entre janeiro e novembro de 2020. A estatística não inclui as mortes de Giane Cristina Alexandre e da mãe dela, Maria Madalena Cordeiro Neto; a de Luciane Simão Silva; e a de Maria Jaqueline de Souza, assassinadas em dezembro.
Feminicídio: Onde buscar ajuda
» Polícia Militar —190
» Polícia Civil —197
» Ministério dos Direitos Humanos —Disque 100
» Delegacias regionais
Atendimento presencial, 24 horas por dia
» Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam I e II)
Asa Sul: Entrequadra 204/205 Sul
Telefone: 3207-6172
Ceilândia: Prédio da 15ª Delegacia de Polícia — QNM 2, Área Especial, Conjunto G/H – Centro
Atendimento ininterrupto.
» Centro de Atendimento à Mulher (Ceam)
De segunda a sexta-feira, das 10h às 16h30
Asa Sul: Estação do Metrô 102 Sul
Telefone: 3323-7264
Ceilândia: QNM 2, Conjunto F, Lote 1/3 – Ceilândia Centro
Telefone: 3373-6668
Planaltina: Jardim Roriz, Área Especial, Entrequadras 1 e 2 – Centro
Telefone: 3389-8189 / 99202-6376
» Programa de Prevenção à Violência Doméstica (Provid) da Polícia Militar
Telefones: 3910-1349 / 3910-1350
» Núcleo de Assistência Jurídica de Defesa da Mulher (Nudem)
Telefone e WhatsApp: 99359-0032
E-mail: najmulher@defensoria.df.gov.br
» Sinal Vermelho
A mulher vítima de violência pode riscar um X vermelho na palma da mão e mostrar a um atendente de farmácia, que acionará a Polícia Militar pelo 190.
Feminicídio: Três perguntas para
Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e idealizadora nacional da campanha Sinal vermelho contra a violência doméstica
Por que, muitas vezes, as vítimas não conseguem sair desse ciclo de violência doméstica?
A violência acontece em todas as classes sociais, mas muitas têm dificuldade de entender que são vítimas de violência e que o que sofrem em casa é um crime. Violência moral, econômica e sexual, mesmo dentro das relações, são crimes de acordo com a Lei Maria da Penha. Mas, além disso, há a dificuldade em denunciar. Muitas mulheres não sabem, não conhecem ou sequer conseguem acessar facilmente os canais de apoio. Por isso a campanha de denúncias Sinal vermelho, lançada pela AMB em parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e farmácias, é importante. Tanto que, agora, a campanha acaba de virar Lei no DF, o que amplia e fortalece estas ações para encorajar mulheres a buscarem seus direitos.
O feminicídio não é um ato isolado. O que há por trás deste crime?
O feminicídio é um problema endêmico no país. É o retrato de uma sociedade muito marcada pela violência de gênero. Em meio à pandemia, foram inúmeros os casos registrados de agressões e violência contra mulheres apenas pela condição de ser mulher. Isso evidencia que este não é apenas um caso de saúde ou de direitos humanos, mas de segurança pública. Então, é preciso agir com ações estratégicas efetivas de combate, com coordenação e interação dos órgãos públicos, para a criação de uma estratégia nacional de combate à violência doméstica. O tratamento deve ser feito com policiamento, projetos comunitários e patrulhas Maria da Penha, mas também com avanços na legislação e com o aprimoramento de leis que já existem.
Qual é o papel da sociedade no combate a este tipo de crime? De que maneira a população pode ajudar?
Deve incentivar as denúncias e ajudar na conscientização. A Sinal Vermelho foi uma das maiores campanhas humanitárias de responsabilidade social do mundo lançadas em meio à pandemia para proteger vítimas. E a nova lei coloca o DF na vanguarda das ações de combate, representando um grande avanço neste momento delicado em que as vítimas, muitas vezes, não conseguem denunciar as agressões porque estão sob constante vigilância. A denúncia é o primeiro passo. Facilitar o acesso e combater as raízes da violência é dever de todas as instituições. Educar e auxiliar quem precisa denunciar é um trabalho para toda a sociedade.
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